Prêmio Érico Vanucci Mendes 2004

 

Laureado:

Prof. Dr. Eduardo Batalha Viveiros de Castro

(UFRJ - Museu Nacional)

 

 

A HORA E A VEZ DA ANTROPOLOGIA

 

Texto-base do discurso (todos os parágrafos foram extraídos de textos anteriormente publicados).

 

 

 

Introdução

 

Sou bacharel em ciências sociais pela Puc-rj (1973), mestre (1977) e doutor (1984) em antropologia social pelo Museu Nacional, professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (Ppgas) desta mesma instituição desde 1978. Fiz breves pesquisas entre as sociedades Yawalapíti (Mato Grosso), Kulina (Acre) e Yanomami (Roraima), e um trabalho mais longo sobre os Araweté, povo de língua tupi-guarani do Médio Xingu (Pará).

Sou um etnólogo, isto é, aquela espécie de antropólogo social que se interessa por sociedades simples, de tradição cultural não-ocidental, etc. Na academia brasileira, isto significa que sou um “especialista em índio”. Tal acepção de “etnólogo” é arbitrária; estou seguindo uma tendência que existe no meio científico local (e consagrada nas classificações do CNPq); em outros países, a palavra tem outras conotações. Os antropólogos que estudam sociedades indígenas são hoje uma minoria dentro da disciplina no Brasil; eles, sobretudo os que estudam coisas como parentesco, ritual ou cosmologia, são vistos por seus colegas como praticando um ofício bizarro, um pouco antiquado, simbolicamente importante mas demasiado técnico e, no fundo, irrelevante. Em troca, é possível que nos concebamos como a aristocracia da disciplina, descendentes em linha direta dos heróis fundadores — como uma espécie de brâmanes da religião antropológica, escolhidos pelo ordálio do trabalho de campo junto a primitivos autênticos, perdidos no coração da selva. Estudamos sociedades que, se não são “complexas”, são completas; aprendemos línguas e costumes exóticos; tratamos de assuntos como xamanismo, aliança matrilateral, metades exogâmicas, ritos funerários, canibalismo; administramos, em suma, aqueles sacra apresentados aos noviços antes que enveredem, majoritariamente, pelas sendas profanas da antropologia em sentido lato. Para nós, as antropologias urbanas e rurais são etnologizações do alheio, obra de aventureiros que invadiram com nossa bandeira os domínios dos burgos vizinhos. Nós etnólogos continuamos morando na cidade velha da antropologia.

Estou brincando. Os antropólogos, como vêm testemunhando as reuniões da ANPOCS, somos muito unidos, e não destôo. Somos unânimes no afirmar que a antropologia não se define por seu objeto, mas por seu método; que não estudamos aldeias ou cidades, mas em aldeias ou cidades — que não estudamos povos, mas problemas... De resto, isso de “índios isolados” também não existe mais, se é que já existiu, ou está acabando (desde o século xvi), e portanto estamos todos necessariamente estudando segmentos de uma sociedade diversa e complexa. Ademais, e por menos que os etnólogos e os demais antropólogos se comuniquem (e nos falamos bastante), temos em comum um conjunto de referências básicas, uma mesma hagiografia, e outras coisas. Mas não creio estar exagerando ao dizer que a etnologia desempenha uma função identitária estratégica dentro de nosso campo disciplinar, bem como um papel teórico maior. Os conceitos, métodos e problemas característicos da antropologia foram forjados no estudo destas sociedades que privilegiamos: cultura, comparação, superação dialética de nossas categorias sociológicas, aproximação qualitativa e vivida do objeto, tensão constitutiva entre o particular e o universal, tudo isto é imediatamente o horizonte da etnologia. Com as devidas ressalvas e qualificações, o trabalho de campo junto a sociedades numericamente pequenas, de tradição cultural não-ocidental, e seu resultado típico, a monografia etnográfica, continuam a ser a referência clássica da antropologia, e, ouso dizer, a raiz de sua autonomia como disciplina.

Sou, em seguida, um “americanista” — especialista nas “terras baixas da América do Sul” —, conforme o totemismo geográfico praticado pela comunidade antropológica internacional. Embora tais categorias de “americanista”, “africanista”, “europeanista” etc. possam, em princípio, aplicar-se também a historiadores, a sociólogos, a estudiosos de populações camponesas ou urbanas, elas são sobretudo importantes na organização da comunidade dos etnólogos, ou, em geral, dos especialistas em povos primitivos ou antigos (lingüistas, arqueólogos). Elas definem o escopo de associações, congressos e jornais científicos, bem como de institutos e equipes de pesquisa; aparecem nos curricula e nos anúncios de posições acadêmicas; e elas evocam, para os etnólogos, todo um complexo folclórico de representações: temas característicos, disposições teóricas, até mesmo tipos de personalidade distintos. Não sei se existe algo semelhante entre os sociólogos e politólogos; entre os historiadores, o totemismo cronológico (os “medievalistas” etc.) parece desempenhar um papel análogo ao de nossas especializações regionais.

É importante observar que “americanista” não é um gênero de que “brasilianista” seria uma espécie. Nossas espécies são antes coisas como “andinista”, “mesoamericanista”, “especialista nos índios das pradarias norte-americanas”, “amazonista”,  e sub-variedades do tipo “tupinólogo”, “jivarólogo” ou “esquimologista”. Para a etnologia que pratico, o fato dos Araweté ou Yawalapíti estarem dentro do território brasileiro e serem uma “minoria étnica” só é pertinente a posteriori, enquanto elemento da história particular destes povos. As relações das sociedades indígenas com a sociedade nacional só me dizem respeito porque são parte da circunstância das primeiras — e ainda assim uma parte que não foi até agora minha preocupação principal.

Se estudei índios no Brasil, é porque a antropologia praticada por aqui se concentra quase exclusivamente em fenômenos intra-muros. Era natural ir para o Alto Xingu, não para a selva peruana; era mais fácil e mais barato; e havia tanto a fazer cá como lá. Não porque buscasse, contudo, qualquer conexão entre os índios do Xingu e a “realidade brasileira” — tornei-me americanista e não brasilianista. Mas se me tornei americanista, e não africanista ou oceanista, foi porque fazer etnologia no Brasil significava estudar índios no Brasil, país periférico sem colônias externas. Meus professores eram americanistas; e finalmente,  não teria sido fácil obter financiamento do CNPq, da FINEP ou do escritório brasileiro da Fundação Ford para fazer pesquisa na Nova Guiné. Em outras palavras, ser um americanista brasileiro não é de forma alguma a mesma coisa que ser um americanista francês ou inglês.

 

* * *

 

Fui fazer antropologia para poder não estudar a “realidade brasileira” — um caso de bovarismo temático. O competente ensino de sociologia na puc entre 1969 e 1973 ministrava aos alunos a mistura da época: a santíssima trindade Marx–Weber–Durkheim, um bocado de epistemologia bachelardo-althusseriana, e doses cavalares de sociologia do subdesenvolvimento. Apesar de toda a epistemofilia, e de alguns excelentes professores de teoria sociológica, o horizonte profissional que eu enxergava era a sociologia do Brasil, versão teoria da dependência, que me entediava até a morte. Queria sair dali o mais rápido possível, lugar completamente fora das minhas idéias. O país me concernia como cidadão, não como cientista social — uma distinção que admito problemática.

Em fuga da sociologia do subdesenvolvimento, os cursos de Luiz Costa Lima sobre o estruturalismo levaram-me a ler a obra de Lévi-Strauss, que me cativou de saída: a ambição universalista de seu pensamento aliada a um prodigioso sentido do detalhe concreto; sua vontade de rigor lógico associada a uma profunda paixão estética; sua capacidade de praticar a boa abstração a partir de uma matéria recôndita e exótica, tal a mitologia rabelaisiana dos índios brasileiros, que ganhava em fruição ao ter exibida sua estrutura contrapontística subjacente, tal o delírio metódico dos sistemas de casamento australianos, que revelavam uma luxuriante matemática selvagem. Achei que achara: eis que meu problema era o espírito humano, não esta ou aquela sociedade (sobretudo, não esta aqui). Eu via na antropologia de Lévi-Strauss uma espécie de meta-sociologia, que estaria para a sociologia como a psicanálise para a psicologia. Lévi-Strauss me conduziu à antropologia, e isto determinou minha relação com a disciplina. Além de americanista, acabei me tornando um etnólogo “estruturalista”. Estruturalista esclarecido, é claro — mas estruturalista, faute de mieux.

O que acabo de dizer não significa, de forma alguma, que eu não conceba minha atividade de antropólogo como política – muito pelo contrário.

Em um dos livros fundadores de nossa disciplina, Primitive Culture (1871), Edward Tylor definiu a antropologia como ”a reformer’s science”, uma ciência de reformadores, cuja missão (arqui-iluminista) seria a de identificar as sobrevivências de crenças e superstições primitivas na modernidade, para poder extirpá-las. Certamente não falo aqui por todos de minha geração, aquela que chegou à idade adulta por volta de 1968; mas para muitos de nós a antropologia era, e continua sendo, o exato oposto de uma reformer’s science ou de uma polícia da razão. Era uma ciência insurrecionária; mais especificamente, era o instrumento de uma certa utopia revolucionária que lutava pela auto-determinação conceitual de todas as minorias do planeta, luta que víamos como um acompanhamento indispensável à auto-determinação política dessas minorias. No caso dos antropólogos brasileiros, isso possuía uma dimensão de urgência muito especial: tratava-se de dar ao processo de constituição das minorias indígenas de nosso país como agentes políticos, iniciado no começo dos anos 70,  uma dimensão propriamente intelectual, isto é, radical, fazendo com que o pensamento dos povos americanos saísse do gueto em que jazia encerrado desde o século XVI.  Nessa luta político-cultural, que se pode imaginar como sendo essencialmente um esforço de criação de multiplicidade (i.e. de anti-empire building), a obra de Lévi-Strauss — alguns de vocês talvez se surpreendam, outros não — foi de uma enorme importância, pois foi pela mediação de Lévi-Strauss que o estilo intelectual das sociedades ameríndias ficou pela primeira vez em posição de modificar os termos da reflexão antropológica geral. Para nós, em suma, se não para Lévi-Strauss, a expressão ‘La pensée sauvage’ não significava de modo algum o “pensamento dos selvagens”, mas o pensamento insubmisso, o pensamento não-domesticado – o pensamento contra o Estado, se quiserem. (Em homenagem a Pierre Clastres).

Sem dúvida, éramos todos mais ou menos hippies; éramos primitivistas e anarquistas, e essencialistas, e tínhamos talvez um senso algo inflado da importância da antropologia, e éramos propensos ao exotismo. Mas não éramos tão ingênuos assim: nosso primitivismo era um desejo de autotransformação; nosso anarquismo não precisa de desculpas; nosso essencialismo era estratégico (mas é claro); e quanto ao exotismo, bem, aqueles eram tempos estranhos, em que o conceito de Outro designava um valor radicalmente positivo, e o de Eu, uma posição detestável. Em outras palavras, ainda não havia emergido o recente e generalizado sentimento contra a diferença, que a vê como inimiga número um da imanência, como se toda diferença fosse um estigma da transcendência e a ante-sala da opressão. Toda diferença é hoje lida como se uma oposição, e toda oposição parece ser concebida como se testemunho da ausência de uma relação:  o verbo “opor” é visto como sinônimo do verbo “excluir” – estranha idéia, que só posso atribuir à suposição culpada de que os outros concebem a alteridade como nós. Bem, eles não o fazem: os outros são outros precisamente por que seus outros são outros que os nossos.

Compreendo a antropologia como consistentemente guiada por este valor cardinal: ajudar a criar as condições para a autodeterminação conceitual — isto é, ontológica — do povo, isto é, dos povos. Seu sucesso ou seu fracasso como ciência serão julgados por isso, e não, ao contrário do que profetizam ou desejam alguns de seus former practicioners, por sua solicitude em se auto-extinguir e dividir seu legado entre uma psicologia neo-evolucionista e uma história neo-difusionista.

 

* * *

 

O ‘antropólogo’ é alguém que discorre sobre o discurso de um ‘nativo’. O nativo não precisa ser especialmente selvagem, ou tradicionalista, tampouco natural do lugar onde o antropólogo o encontra; o antropólogo não carece ser excessivamente civilizado, ou modernista, sequer estrangeiro ao povo sobre o qual discorre. Os discursos, o do antropólogo e sobretudo o do nativo, não são forçosamente textos: são quaisquer práticas de sentido. O essencial é que o discurso do antropólogo (o ‘observador’) estabeleça uma certa relação com o discurso do nativo (o ‘observado’). Essa relação é uma relação de sentido, ou, como se diz quando o primeiro discurso pretende à Ciência, uma relação de conhecimento. Mas o conhecimento antropológico é imediatamente uma relação social, pois é o efeito das relações que constituem reciprocamente o sujeito que conhece e o sujeito que ele conhece, e a causa de uma transformação (toda relação é uma transformação) na constituição relacional de ambos.

Essa (meta)relação não é de identidade: o antropólogo sempre diz, e portanto faz, outra coisa que o nativo, mesmo que pretenda não fazer mais que redizer ‘textualmente’ o discurso deste, ou que tente dialogar — noção duvidosa — com ele. Tal diferença é o efeito de conhecimento do discurso do antropólogo, a relação entre o sentido de seu discurso e o sentido do discurso do nativo.

   A alteridade discursiva se apóia, está claro, em um pressuposto de semelhança. O antropólogo e o nativo são entidades de mesma espécie e condição: são ambos humanos, e estão ambos instalados em suas culturas respectivas, que podem, eventualmente, ser a mesma. Mas é aqui que o jogo começa a ficar interessante, ou melhor, estranho. Ainda quando o antropólogo e o nativo compartilham a mesma cultura, a relação de sentido entre os dois discursos diferencia tal comunidade: a relação do antropólogo com sua cultura e a do nativo com a dele não é exatamente a mesma. O que faz do nativo um nativo é a pressuposição, por parte do antropólogo, de que a relação do primeiro com sua cultura é natural, isto é, intrínseca e espontânea, e, se possível, não-reflexiva; melhor ainda se for inconsciente. O nativo exprime sua cultura em seu discurso; o antropólogo também, mas, se ele pretende ser outra coisa que um nativo, deve poder exprimir sua cultura culturalmente, isto é, reflexiva, condicional e conscientemente. Sua cultura se acha contida, nas duas acepções da palavra, na relação de sentido que seu discurso estabelece com o discurso do nativo. Já o discurso do nativo, esse está contido univocamente, encerrado em sua própria cultura. O antropólogo usa necessariamente sua cultura; o nativo é suficientemente usado pela sua.

Tal diferença, é ocioso lembrar, não reside na assim chamada natureza das coisas; ela é própria do jogo de linguagem que vamos descrevendo, e define as personagens designadas (arbitrariamente no masculino) como ‘o antropólogo’ e ‘o nativo’. Vejamos mais algumas regras desse jogo.

A idéia antropológica de cultura coloca o antropólogo em posição de igualdade com o nativo, ao implicar que todo conhecimento antropológico de outra cultura é culturalmente mediado. Tal igualdade é porém, em primeira instância, simplesmente empírica ou de fato: ela diz respeito à condição cultural comum (no sentido de genérica) do antropólogo e do nativo. A relação diferencial do antropólogo e o nativo com suas culturas respectivas, e portanto com suas culturas recíprocas, é de tal ordem que a igualdade de fato não implica uma igualdade de direito — uma igualdade no plano do conhecimento. O antropólogo tem usualmente uma vantagem epistemológica sobre o nativo. O discurso do primeiro não se acha situado no mesmo plano que o discurso do segundo: o sentido que o antropólogo estabelece depende do sentido nativo, mas é ele quem detém o sentido desse sentido — ele quem explica e interpreta, traduz e introduz, textualiza e contextualiza, justifica e significa esse sentido. A matriz relacional do discurso antropológico é hilemórfica: o sentido do antropólogo é forma; o do nativo, matéria. O discurso do nativo não detém o sentido de seu próprio sentido. De fato, como diria Geertz, somos todos nativos; mas de direito, uns sempre são mais nativos que outros.

Proponho aqui as perguntas seguintes. O que acontece se recusarmos ao discurso do antropólogo sua vantagem estratégica sobre o discurso do nativo? O que se passa quando o discurso do nativo funciona, dentro do discurso do antropólogo, de modo a produzir reciprocamente um efeito de conhecimento sobre este discurso? Quando a forma intrínseca à matéria do primeiro modifica a matéria implícita na forma do segundo? Tradutor, traidor, diz-se; mas o que acontece se o tradutor decidir trair sua própria língua? O que sucede se, insatisfeitos com a mera igualdade passiva, ou de fato, entre os sujeitos desses discursos, reivindicarmos uma igualdade ativa, ou de direito, entre os discursos eles mesmos? Se a disparidade entre os sentidos do antropólogo e do nativo, longe de neutralizada por tal equivalência, for internalizada, introduzida em ambos os discursos, e assim potencializada? Se, ao invés de admitir complacentemente que somos todos nativos, levarmos às últimas, ou devidas, conseqüências a aposta oposta — que somos todos ‘antropólogos’, e não uns mais antropólogos que os outros, mas apenas cada um a seu modo, isto é, de modos muito diferentes? O que muda, em suma, quando a antropologia é tomada como uma prática de sentido em continuidade epistêmica com as práticas sobre que discorre, como equivalente a elas? Isto é, quando aplicamos a noção de ‘antropologia simétrica’ (Bruno Latour) à antropologia ela própria, não para fulminá-la por colonialista, exorcizar seu exotismo, minar seu campo intelectual, mas para fazê-la dizer outra coisa? Outra coisa não apenas que o discurso do nativo, pois isso é o que a antropologia não pode deixar de fazer, mas outra que o discurso, em geral sussurrado, que o antropólogo enuncia sobre si mesmo, ao discorrer sobre o discurso do nativo?

Se fizermos tudo isso, eu diria que estaremos fazendo o que sempre se chamou propriamente de ‘antropologia’, em vez de — por exemplo — ‘sociologia’ ou ‘psicologia’. Digo apenas diria, porque muito do que se fez e faz sob esse nome supõe, ao contrário, que o antropólogo é aquele que detém a posse eminente das razões que a razão do nativo desconhece. Ele tem a ciência das doses precisas de universalidade e particularidade contida no nativo, e das ilusões que este entretém a respeito de si próprio — ora manifestando sua cultura nativa acreditando manifestar a natureza humana (o nativo ideologiza sem saber), ora manifestando a natureza humana acreditando manifestar sua cultura nativa (ele cognitiza à revelia). A relação de conhecimento é aqui concebida como unilateral, a alteridade entre o sentido dos discursos do antropólogo e do nativo resolve-se em um englobamento. O antropólogo conhece de jure o nativo, ainda que possa desconhecê-lo de facto. Quando se vai do nativo ao antropólogo, dá-se o contrário: ainda que ele conheça de facto o antropólogo (frequentemente melhor do que este o conhece), não o conhece de jure, pois o nativo não é, justamente, antropólogo como o antropólogo. A ciência do antropólogo é de outra ordem que a ciência do nativo, e precisa sê-lo: a condição de possibilidade da primeira é a deslegitimação das pretensões da segunda, seu “epistemocídio”, no forte dizer de Bob Scholte. O conhecimento por parte do sujeito exige uma espécie de ignorância transcendental por parte do objeto.

Mas não é realmente preciso fazer um drama a respeito disso. Como atesta a história da disciplina, esse jogo discursivo, com tais regras desiguais, disse muita coisa instrutiva sobre os nativos. A experiência proposta no presente artigo, entretanto, consiste precisamente em recusá-lo. Não porque tal jogo produza resultados objetivamente falsos, isto é, represente de modo errôneo a natureza do nativo; o conceito de verdade objetiva (como os de representação e de natureza) é parte das regras desse jogo, não do que se propõe aqui. De resto, uma vez dados os objetos que o jogo clássico se dá, seus resultados são frequentemente convincentes, ou pelo menos, como gostam de dizer os adeptos desse jogo, ‘plausíveis’. Recusar esse jogo significa apenas, portanto, dar-se outros objetos, compatíveis com as outras regras acima esboçadas.

O que estou sugerindo, em poucas palavras, é a incompatibilidade entre duas concepções da antropologia, e a necessidade de escolher entre elas. De um lado, temos uma imagem do conhecimento antropológico como resultando da aplicação de conceitos extrínsecos ao objeto: sabemos de antemão o que são as relações sociais, ou a cognição, o parentesco, a religião, a política etc., e vamos ver como tais entidades se realizam neste ou naquele contexto etnográfico — como elas se realizam, é claro, pelas costas dos interessados. De outro lado (e este é o jogo aqui proposto), está uma idéia do conhecimento antropológico como envolvendo a pressuposição fundamental de que os procedimentos que caracterizam a investigação são conceitualmente de mesma ordem que os procedimentos investigados. Tal equivalência no plano dos procedimentos, sublinhe-se, supõe e produz uma não-equivalência radical de tudo o mais. Pois, se a primeira concepção de antropologia imagina cada cultura ou sociedade como encarnando uma solução específica de um problema genérico — ou como preenchendo uma forma universal (o conceito antropológico) com um conteúdo particular —, a segunda, ao contrário, suspeita que os problemas eles mesmos são radicalmente diversos; sobretudo, ela parte do princípio de que o antropólogo não sabe de antemão quais são eles. O que a antropologia, nesse caso, põe em relação são problemas diferentes, não um problema único (‘natural’) e suas diferentes soluções (‘culturais’). A “arte da antropologia”, penso eu, é a arte de determinar os problemas postos por cada cultura, não a de achar soluções para os problemas postos pela nossa. E é exatamente por isso que o postulado da continuidade dos procedimentos é um imperativo epistemológico.

Dos procedimentos, repito, não dos que os levam a cabo. Pois tampouco se trata de condenar o jogo clássico por produzir resultados subjetivamente falseados, ao não reconhecer ao nativo sua condição de Sujeito: ao mirá-lo com um olhar distanciado e carente de empatia, construí-lo como um objeto exótico, diminuí-lo como um primitivo não-coevo ao observador, negar-lhe o direito humano à interlocução — conhece-se a litania. Não é nada disso. Antes pelo contrário, penso. É justo porque o antropólogo toma o nativo muito facilmente por um outro sujeito que ele não consegue vê-lo como um sujeito outro, como uma figura de Outrem que, antes de ser sujeito ou objeto, é a expressão de um mundo possível. É por não aceitar a condição de ‘não-sujeito’ (no sentido de outro que o sujeito) do nativo que o antropólogo introduz, sob a capa de uma proclamada igualdade de fato com este, sua sorrateira vantagem de direito. Ele sabe demais sobre o nativo desde antes do início da partida; ele predefine e circunscreve os mundos possíveis expressos por esse outrem; a alteridade de outrem foi radicalmente separada de sua capacidade de alteração. O autêntico animista é o antropólogo, e a observação participante é a verdadeira (ou seja, falsa) participação primitiva.

Indaguei o que aconteceria se recusássemos a vantagem epistemológica do discurso do antropólogo sobre o do nativo; se entendêssemos a relação de conhecimento como suscitando uma modificação, necessariamente recíproca, nos termos por ela relacionados, isto é, atualizados. Isso é o mesmo que perguntar: o que acontece quando se leva o pensamento nativo a sério? Quando o propósito do antropólogo deixa de ser o de explicar, interpretar, contextualizar, racionalizar esse pensamento, e passa a ser o de o utilizar, tirar suas conseqüências, verificar os efeitos que ele pode produzir no nosso? O que é pensar o pensamento nativo? Pensar, digo, sem pensar se aquilo que pensamos (o outro pensamento) é “aparentemente irracional”, ou pior ainda, naturalmente racional, mas pensá-lo como algo que não se pensa nos termos dessa alternativa, algo inteiramente alheio a esse jogo? Isso é o mesmo que perguntar: o que acontece quando se leva o pensamento nativo a sério? Quando o propósito do antropólogo deixa de ser o de explicar, interpretar, contextualizar, racionalizar esse pensamento, e passa a ser o de o utilizar, tirar suas conseqüências, verificar os efeitos que ele pode produzir no nosso? O que é pensar o pensamento nativo? Pensar, digo, sem pensar se aquilo que pensamos (o outro pensamento) é “aparentemente irracional”, ou, God forbid, naturalmente racional, mas pensá-lo como algo que não se pensa nos termos dessa alternativa, algo inteiramente alheio a esse jogo?

Levar a sério é, sobretudo, não neutralizar. É, por exemplo, pôr entre parênteses a questão de saber se e como tal pensamento ilustra universais cognitivos da espécie humana, explica-se por certas tecnologias de transmissão do conhecimento, exprime uma visão de mundo culturalmente particular, valida funcionalmente a distribuição do poder político, e outras tantas formas de neutralização do pensamento alheio. Suspender tal questão ou, pelo menos, evitar encerrar a antropologia nela; decidir, por exemplo, pensar o outro pensamento apenas (digamos assim) como uma atualização de virtualidades insuspeitas do pensar.

Para isso, porém, é preciso que tiremos todas as conseqüências do fato de que o discurso do nativo fala de outra coisa que exclusivamente do nativo, isto é, de sua sociedade ou de sua mente: ele fala do mundo. Isso significa assumir que “os verdadeiros problemas da antropologia não são epistemológicos, mas ontológicos”, como disse tão bem V. Argyrou; e eu me permitira acrescentar: o verdadeiros objetos da antropologia não são epistemologias, mas ontologias. Chamo a atenção de vocês para a utilização cada vez mais freqüente desta palavra, ‘ontologia’, na literatura antropológica contemporânea. Ela me parece traduzir nossa insatisfação crescente com a  constituição kantiana ou mais simplesmente moderna, de nossa disciplina.

É claro que  imagem do Ser constitui um solo analógico perigoso para se pensar as imaginações não-ocidentais, e a noção de ontologia não deixa de ter seus riscos. Talvez a ousada sugestão de Gabriel Tarde, de abandonarmos o conceito irremediavelmente solipsista de Ser e recomeçarmos a metafísica a partir do Ter (Avoir), no que este implica de transitividade intrínseca, de abertura originária a uma exterioridade, seja mais interessante em muitos casos. Não obstante, acho importante a linguagem da ontologia por um motivo, digamos, tático. Ela toma a contrapelo uma manobra freqüente contra o pensamento do nativo, que consiste no bloqueio desrealizante desse pensamento através de sua redução às dimensões de um conhecer ou representar, isto é, a uma ‘epistemologia’ ou a uma ‘visão de mundo’ — como se o que houvesse a conhecer ou a ver já estivesse resolvido de antemão; e resolvido, é claro, a favor de nossa ontologia. A noção de ontologia, portanto, não é evocada aqui para sugerir que todo pensamento, seja ele grego, melanésio ou amazônico, exprime uma metafísica do Ser, mas sim para sublinhar que todo pensamento é inseparável de uma realidade que constitui o seu exterior. Isso significa que a democracia epistemológica costumeiramente professada pela antropologia, quando afirma a diversidade cultural dos significados, revela-se, como tantas outras democracias que conhecemos tão bem, muito relativa, pois se apóia ‘em última instância’ em uma monarquia ontológica absoluta, onde se impõe a unidade referencial da natureza. É contra essa piedosa hipocrisia relativista que termino mais uma vez afirmando que a antropologia é a ciência da autodeterminação ontológica dos povos, e que, assim, ela é uma ciência política de pleno direito, pois seu motto é — ou deveria ser — aquele mesmo que se escrevia nos muros de Paris em maio de 1968: ‘l’imagination au pouvoir’. O resto é business as usual.

 

No Museu Nacional

 

Em 1974-76, quando comecei a pós-graduação, a tradição etnológica do Museu Nacional estava em baixa. O Ppgas foi fundado em 1968; minha dissertação de 1977 sobre os Yawalapíti, o trigésimo-sétimo mestrado da instituição, foi apenas a terceira a versar sobre uma sociedade indígena. Pouco antes da criação do Ppgas, Roque Laraia e Júlio César Melatti haviam ido para a UnB; Roberto Cardoso de Oliveira, David Maybury-Lewis e Luiz de Castro Faria conduziram o Programa em seus primeiros passos, e logo em seguida Roberto da Matta retornou de Harvard para se juntar a eles. Cardoso, o idealizador do Ppgas,  foi para a UnB em 1971, e Maybury-Lewis voltou a Harvard. Por algum motivo, estes dois pesquisadores, responsáveis por projetos de pesquisa que marcaram época na antropologia brasileira, não chegaram a formar um contingente de etnólogos no Ppgas; quando lá entrei eles já tinham partido. Roberto da Matta, após sua tese sobre os Apinayé, começou a se voltar para o estudo de aspectos da sociedade brasileira. Assim, se a antropologia do Ppgas estava em plena efervescência, a área indígena adormecia: o movimento dominante era o de anexação das problemáticas urbana, camponesa e nacional. Mas foi através dos cursos de DaMatta sobre teoria do parentesco e sobre etnologia sul-americana que reencontrei Lévi-Strauss e a idéia de estudar índios: pois apesar de todo o estruturalismo absorvido na graduação, não entrei no Museu já tendo em mente um projeto de trabalho em etnologia stricto sensu; eu queria mesmo era apenas fugir da sociologia do Brasil.

Em 1976, quando eu já iniciava minha pesquisa com os Yawalapíti do Parque do Xingu, Anthony Seeeger chegou ao Ppgas. Seeger era recém-doutorado de Chicago, estava ligado ao grupo do Harvard/Central Brazil Project, e estudava os Suyá, grupo jê do Parque do Xingu. Ele co-orientou com Matta o meu mestrado e foi meu orientador no doutorado. Foi ele quem me formou etnólogo, ensinando-me muitas coisas que não se acham nos livros. Seeger relançou a etnologia como área de trabalho no Museu Nacional, restabelecendo a continuidade com uma das linhas de pesquisa que ali se desenvolveram nos anos 60, aquela que deriva do projeto de estudo dos Jê do Brasil Central.

 

* * *

 

Embora institucional e pessoalmente entrelaçadas, as duas linhas principais de pesquisa etnológica do Museu Nacional apontavam-me em direções opostas. A linha identificada a Roberto Cardoso de Oliveira, lançada em seu projeto “Estudo de áreas de fricção interétnica no Brasil” (1962), parecia-me demasiado próxima daquilo de que eu fugia como o diabo da cruz. Com efeito, Cardoso de Oliveira propunha uma “sociologia do Brasil indígena”, enquanto eu buscava uma antropologia a partir de sociedades indígenas (acidentalmente) brasileiras. Por trás das teorias de Cardoso, apesar de suas contribuições decisivas para a sociologia geral do contato interétnico, eu acreditava divisar vestígios da tradicional subordinação da etnologia brasileira a uma Teoria do Brasil, cuja expressão caricaturalmente exemplar era a obra de seu antecessor Darcy Ribeiro, que consagrara sob o modo teórico a dominação que denunciava. O que me interessa não é a “questão nacional”, ou qualquer “teoria do Brasil”. O que me interessa não é, tampouco, a “questão indígena”, nome do problema que a existência passada, presente e futura dos povos indígenas significa para a classe e a etnia dominantes no país. O que me interessa são as questões indígenas, no plural — entenda-se, as questões que as culturas indígenas se põem elas próprias, e que as constituem como culturas distintas da cultura dominante. Digamos então que o que me interessa não são os índios enquanto parte do Brasil, mas os índios sem mais; para mim, se algo é parte de algo, é o “Brasil” que é parte do contexto das culturas indígenas, e não o contrário. Entre as questões indígenas encontra-se, naturalmente, e já lá vão quinhentos anos, a “questão dos brancos”, ou seja, o problema que o “Brasil” oferece para os povos indígenas que aqui vivem. Mas o “Brasil” é apenas um desses problemas práticos e teóricos que se oferecem aos índios, pois os brancos são apenas mais uma dentre as várias espécies (embora uma espécie particularmente problemática) de Outros com quem cada sociedade indígena deve se haver: os animais, os espíritos, os outros povos indígenas…

A segunda linha de pesquisa, identificada a Maybury-Lewis, permitia o acesso à antropologia de minha preferência. Tratava-se do estudo etnográfico das sociedades Jê e Bororo do Brasil Central, que haviam sido objeto de trabalhos célebres de Nimuendaju e Lévi-Strauss, e que apresentavam enigmas consideráveis para a teoria do parentesco e para as tipologias em vigor sobre as culturas sul-americanas. Os Jê e Bororo possuem uma organização social complexa, onde se reencontram figuras clássicas da etnologia: metades, sociedades cerimoniais, classes de idade, terminologias de parentesco de tipo “crow-omaha” (um dos gadgets prediletos dos entendidos), ritos de iniciação, prestações cerimoniais, aldeias circulares...

Maybury-Lewis fora aluno de Herbert Baldus, em São Paulo, e depois de Rodney Needham, em Oxford. Havia-se distinguido por suas contribuições à chamada “teoria da aliança”, que vem a ser a versão inglesa da teoria d’As Estruturas elementares do parentesco; havia também entrado em uma polêmica com Lévi-Strauss a propósito das organizações dualistas; e havia produzido uma das primeiras monografias modernas sobre uma sociedade indígena sul‑americana. Ele e o grupo de “jê-ólogos” — Matta, Melatti, Turner, Crocker, Lave, Bamberger, e numa próxima geração acadêmica, Seeger — eram assim uma ligação com o centro clássico da teoria antropológica, capazes de pôr os índios brasileiros na série que incluía os trobriandeses, os Nuer, os Kachin e os Crow.

 

 

O campo

 

Antes de me decidir pela etnologia, flertei um bom tempo com a antropologia urbana, trabalhando como assistente de Gilberto Velho em pesquisas sobre o estilo de vida da classe média carioca e a cultura das drogas. Tenho até hoje interesse pelo tema. Mas resolvido a experimentar o trabalho com índios, embarquei numa excursão que a lingüista Charlotte Emmerich conduziu ao Parque do Xingu em 1975 — havia uma tradição de estudos xinguanos no Museu Nacional, em antropologia e em ciências naturais —; acabei voltando lá e fazendo uma dissertação sobre os Yawalapíti. No doutorado, após duas tentativas malogradas de achar uma situação que me conviesse, fui parar nos Araweté.

 

* * *

 

Com exceção de um breve survey dos Kulina do Purus, estudei sociedades fracamente articuladas ao sistema nacional, isto é, relativamente “tradicionais” e “isoladas”. Minhas duas teses foram sobre grupos com menos de duzentas pessoas, o primeiro parte de um sistema regional indígena protegido, em 1975-77, de interferências disruptivas diretas, o outro um povo que em 1981 tinha apenas cinco anos de contato regular com o órgão indigenista oficial, e quase nenhuma interação com estrangeiros. Houve nesta escolha muito romantismo e emulação, mas foi também algo consistente com meus interesses teóricos. Sempre estive consciente que os Yawalapíti e os Araweté não representavam nenhuma situação típica, seja da condição indígena contemporânea, seja do que teria sido o mundo pré-colombiano: seu pequeno contingente demográfico, sua condição relativamente isolada e protegida é o fruto da mesma história hostil que destruiu ou subordinou centenas de outras sociedades. Mas se eu estivesse interessado em fenômenos majoritários, não teria ido estudar índios, para começar; e estes povos apresentavam uma situação mais simples, para o que me interessava: o estudo de outras — para usarmos a fórmula de Wittgenstein — “formas de vida”. Tratava-se de encontrar, na estreita margem do possível, condições propriamente experimentais, isto é, onde eu pudesse fazer abstração legítima das conexões entre o que se pode abarcar com os olhos e o que está além. Assim, a escolha de grupos “isolados” foi uma decisão tática de limitação: queria encontrar uma forma de vida suficientemente distante para que fosse apreensível em seu esquematismo básico; apreensível, isto é, por aquilo que Lévi-Strauss chamou de “ponto de vista astronômico” da etnologia.

Escrevi, em ambos os casos, etnografias gerais, mas com ênfase na “cosmologia”: as estruturas espácio-temporais da sociabilidade, a posição dos humanos na ordem dos seres vivos, as classificações étnicas e sócio-políticas, os dispositivos e condições de articulação entre o socius e seu exterior, os idiomas simbólicos organizados em torno das substâncias que comunicam o corpo e o mundo, a ideologia do parentesco, a etnopsicologia, a concepção da pessoa, a escatologia, etc. Em nenhum momento fiz propriamente “etnociência”, ou se o fiz, foi uma etno-sociologia: preocupava-me a ontologia social yawalapíti e araweté, a concepção de sociedade que dava unidade aos domínios simbólicos que isolei, a orientação teórica e prática do pensamento social destes povos. Para tanto, era preciso associar esta investigação cosmológica a uma descrição sociológica — sistema de parentesco, estrutura econômica, vida política, organização ritual... dimensões que tomei como imersas num quadro ideológico mais amplo, inseparáveis do discurso indígena sobre a identidade e a diferença, o social e o extra-social, o humano e o não-humano, a corporalidade e a espiritualidade, a vida e a morte.

Tais estudos só podem ser chamados de “estruturalistas” com alguma boa vontade. Se eles efetivamente o são, é porque as dimensões semânticas que privilegiaram, e as interpretações a elas dadas, são tributárias de uma leitura etnográfica das Mythologiques de Lévi-Strauss, interessada menos nas propriedades gerais do discurso mitológico em si que no pensamento social ameríndio expresso neste discurso. Os temas e o estilo intelectual de minhas etnografias derivam daí, embora eu tenha dado pouca atenção à mitologia yawalapíti ou araweté enquanto tais, preferindo trabalhar com um material mais heteróclito. O que talvez resgate estes estudos da epigonia seja sua orientação propriamente etnográfica, de um lado — a tentativa de reconstituição de sistemas locais de pensamento e ação —, e, de outro, uma certa inquietação teórica que se aventura nas fronteiras da temática estruturalista.

Na minha pesquisa sobre os Araweté, em particular, tentei explorar domínios onde a máquina lévi-straussiana se mostra limitada, como é o caso daqueles dispositivos simbólicos das culturas ameríndias que escapam a uma concepção metaforista da significação e aos operadores interpretativos “totêmicos” que supõem um contraste estático e reversível entre termos que permanecem distintos das relações que os ligam. O fenômeno-tipo de tais dispositivos metonímicos, assimétricos e irreversíveis foi para mim o canibalismo ritual dos povos tupi, que aparece sob uma forma teológica e escatológica entre os Araweté. Foi a partir da questão do canibalismo que começou a se desenhar o que vem sendo meu trabalho atual, conduzido em sintonia com o de alguns colegas no Brasil e no exterior: uma investigação comparativa sobre o lugar e a função da alteridade nas sociedades amazônicas. Isto me levou a retomar questões clássicas da teoria do parentesco e a caminhar na direção de uma teoria mais abstrata das estruturas sociais amazônicas.

 

 

Na selva

 

Minha pesquisa com os Yawalapíti foi muito curta, mesmo para os padrões de um mestrado: cerca de dois meses de campo (voltei para mais dois meses um ano após defender a dissertação). Tive dificuldades burocráticas e logísticas para chegar ao Xingu, problemas de prazo acadêmico, e pequei por falta de perseverança

Não cheguei a ficar tempo suficiente entre os Yawalapíti para poder falar algo de sua língua, condição fundamental para o tipo de trabalho a que me proponho. No correr de minha estada, além de fazer o dever de casa antropológico, fui alinhavando detalhes que me pareciam significativos, modulações de temas clássicos, vagas intuições de conjunto. Alguns tópicos se destacaram, particularmente uma “teoria” da fabricação do corpo que, sobre permitir articular domínios diversos, como a ideologia do parentesco, as reclusões rituais, os regimes sexual e alimentar, a imagem do homem ideal, o xamanismo e a doença, os valores simbólicos do espaço, parecia indicar também que o pensamento xinguano não professa um dualismo entre processos físicos e processos sociais, entre o que releva da espontaneidade natural e o que resulta da intervenção cultural: a fisiologia era ali imediatamente uma moral. Outro gancho heurístico importante foi fornecido por um traço da língua yawalapíti, que me pareceu consistente com um aspecto central de sua cosmologia: trata-se de um conjunto de modificadores nominais que exprimem a distância progressiva dos entes do mundo face a um mundo mítico-espiritual de protótipos ou de essências ideais, definidas como sendo ao mesmo tempo perfeitas e excessivas em relação às suas réplicas atuais. Isto, associado a inúmeras outras pistas, levou-me a caracterizar a cosmologia yawalapíti como fundada na gradação e na continuidade, em nítido contraste com o estilo binário e descontinuísta dos Jê.

 

* * *

 

Antes de chegar nos Araweté, passei dois meses entre os Kulina do Purus, em 1978, para um levantamento etnográfico. As perspectivas eram interessantes, mas a situ­ação dos Kulina, presos então nas malhas do aviamento e do barracão, tentando adquirir instrumentos para melhorar sua posição no sistema regional, disputados pela Igreja, pela FUNAI e pelos patrões, fez-me desistir. Eles careciam de alguém com maior compreensão da história e da sociologia da Amazônia, e que fosse capaz de estudar algo que lhes interessasse. Este não era, infelizmente, o meu caso. Deixei de estudar os Kulina não porque eles não fossem “tradicionais” (sua cultura funcionava vigorosamente), mas sim porque eu perseguia uma situação mais simples. Desistindo deles, tentei uma pesquisa com os Yanomami, mas embaraços logísticos me fizeram arrepiar caminho após três meses de campo em 1979, boa parte deles passada num posto indígena. Foi então que me surgiram os Araweté, pequena e ignota tribo tupi-guarani que havia sido anexada pelo Estado brasileiro em 1976.

Levei quase um ano saltando os obstáculos armados por um dos setores então mais ineptos, corruptos e autoritários da burocracia nativa, a Fundação Nacional do Índio. Comecei o trabalho de campo em 1981 e o terminei em 1983, passando um total de onze meses na aldeia do Ipixuna. Por motivos diversos, entre os quais alguns já mencionados quando falei dos Yawalapíti, não cheguei a passar mais de três meses e meio seguidos na área. Repetidos ataques de malária encerraram o trabalho antes do desejável.

Perto dos Yawalapíti, os Araweté eram selvagens hard core. Praticamente monolíngües, com pouca experiência dos brancos e nenhuma de antropólogos, minha convivência com eles foi intensa e educativa para ambas as partes. Envolvi-me emocionalmente com as pessoas, aprendi como pude sua língua, fiz algumas tentativas de viver parecido com elas, e conduzi uma pesquisa muito mais desorganizada que aquela com os Yawalapíti. Como a maioria dos etnógrafos, muitas vezes esqueci o que estava fazendo lá, e todo o tempo acompanhou-me a sensação de que não teria nenhuma tese a escrever.

 

* * *

 

Entre os Araweté, ao contrário da experiência anterior, apeguei-me muito cedo a uma questão: à relação entre os humanos e os Maï, termo que traduzi por “deuses” ou “divindades”, e em particular ao tema da transubstanciação canibal póstuma sofrida pelos viventes no céu, que os transforma em seres semelhantes àqueles que os devoram, os Maï. Acreditei que os deuses e seu intrigante canibalismo eram “o problema” desta sociedade, seu gado ou sua bruxaria. Como nestes casos proverbiais, entretanto, eles só me interessavam enquanto via de acesso a algo menos concreto e mais geral; no caso, a cosmologia Araweté, sua concepção do homem, da sociedade e do mundo. Mais que gado nuer ou bruxaria azande, a relação entre humanos e deuses no pensamento araweté funcionou para mim como um análogo do kula de Malinowski, do naven de Bateson ou da guerra de Florestan: como aquele “fato social total” que serve de fio condutor para a investigação uma cultura. Não sei se o complexo de relação com os Maï ocupa um lugar psicologicamente central na vida dos Araweté; mas, tal como sua vida me foi por eles apresentada, penso que se trate de algo efetivamente importante em sua cosmologia: os Maï e o que lhes dizia respeito eram o “idioma”, o topos dominante da cultura araweté. Só assim ele poderia desempenhar com pertinência a função que lhe atribuí, a de eixo para a construção de uma etnografia geral, sem o qual esta se torna uma tediosa ficha dividida em tópicos escolares: economia, parentesco, política, religião, mudança social, etc. Mas não duvido que outro etnógrafo, que partisse de outras questões e outras ênfases, fosse capaz de oferecer uma imagem da sociedade araweté capaz de iluminar aspectos que deixei na sombra.

Falei acima na função de “gancho” heurístico desempenhada por certos temas ou complexos de uma cultura na construção de uma etnografia. É preciso ter claro que este recurso, se é mais que um mero formalismo expositivo — pois uma sociedade ou cultura não se deixa abordar com igual felicidade por qualquer lado —, não revela por isso uma espécie de quintessência da forma de vida que descrevemos, seu plano diretor ou sua chave‑mestra. É preciso, sobretudo, cautela com a linguagem teoricista que trata uma cultura como se fosse um conjunto de proposições filosóficas sobre o mundo, capazes de serem reduzidas a “princípios” essenciais. Não sei até que ponto esta representação principista de uma cultura alheia é inevitável — eu certamente exagerei na dose, em minha tese sobre os Araweté —, mas ela pelo menos não deveria ser vista como natural; é certamente tão convencional quanto a visão instrumentalista e “estratégica” que se costuma propor como alternativa mais “verdadeira” a ela. Digamos que acredito na principialidade da teo-escatologia dos Araweté tanto quanto, por exemplo, eles acreditam em sua substância: a existência póstuma, divina e celeste, é excelente — mas ninguém cortaria o próprio pescoço para antecipá-la. Teoria, lá como cá, é teoria.

Isto posto, foi deliberadamente que dei uma interpretação “anagógica”, na dupla acepção do termo, da cultura araweté: persegui ali as manifestações da teologia dos Maï, e busquei ligar uma quantidade de processos, eventos e conceitos a uma visão total do mundo, que funcionaria como uma espécie de causa formal suprema desta cultura. O que é a noção de “fato social total”, senão uma reivindicação da anagogia como método interpretativo? Como passar de técnicas de cozinha, estilos de pintura corporal, expressões idiomáticas, movimentos rituais, taxonomias de parentesco, a algo como uma “cultura”, sem um esforço metódico de super-interpretação (no sentido teatral) desta massa de detalhes que, tomados em si, são mudos, mas que uma vez encadeados se põem a falar, sugerindo uma significação que os engloba a todos? Anagogia e analogia são procedimentos automáticos do etnógrafo.

Pactuei, sobretudo, com o demônio da anagogia quando fiz da vida araweté a expressão de uma filosofia do devir que se manifestaria em seu estilo de sociabilidade, sua ética, sua vida ritual, seu xamanismo e sua escatologia. Isto foi, repito, deliberado. Quis apresentar os Araweté sob esta luz: como praticando, senão professando (pois têm mais o que fazer, e não possuem metafísicos profissionais), uma autêntica ontologia, capaz de ser inferida de suas formas de sociabilidade e de seu estilo cognitivo. Quis dar a seu pensamento uma apresentação que o livrasse do exotismo de pacotilha e do sociologismo acachapante; escolhi um vocabulário vagamente filosófico para que o respeitassem como pensamento. Ingenuidade logocêntrica de minha parte, certamente.

 

* * *

 

De início, o problema com que me defrontei era o seguinte: o que fazer com a sociedade araweté? Como dar sentido ao que eu via — onde estava, a rigor, a sociedade? Defrontava-me com uma daquelas típicas “organizações fluidas” da Amazônia, sem segmentações sociocêntricas, sem grupos de descendência, sem normas claras de aliança ou de residência, com uma chefia nominal, e nenhum pendor para a ação coletiva; para piorar as coisas, mesmo os lugares comuns do americanismo tropical não eram levados muito a sério: couvade, evitação dos afins, tabus alimentares, relações complicadas com os espíritos da mata, simbolismo espacial desenvolvido... Demorei um pouco a perceber que a saída era o xamanismo e as entidades nele envolvidas, os Maï e os mortos do grupo; em seguida, que havia um complexo guerreiro importante; dei-me conta que as idéias relacionadas à morte e ao destino póstumo permitiam “costurar” a sociedade e a pessoa, a sociologia e a psicologia araweté. Se eu não tinha nenhum interesse especial pela teologia, pela morte, pela legião de espíritos que povoa o cosmos araweté, passei a tê-lo desde que ficou claro que era sobre isto que eles preferiam falar comigo; era, também, uma das poucas coisas a que eu me podia agarrar, naquele povo “imperceptível”, sem nenhuma queda para a minúcia ritual ou para o espetáculo sociológico. O canibalismo divino, finalmente, me abriu o caminho até os Tupinambá: decidi que este traço da escatologia araweté remetia ao complexo da antropofagia ritual tupi-guarani, e que os fatos araweté e os fatos quinhentistas iluminavam-se mutuamente. Aquilo que nos Tupinambá fora sociologia, nos Araweté havia sido transformado em psico‑teologia; e portanto, haveria que ver quão sociológica era esta, quão psico‑teológica aquela.

Dois estudos foram fundamentais para que minha análise tomasse forma: o de Hélène Clastres (1975) sobre o profetismo tupi-guarani antigo, o de Manuela Carneiro da Cunha (1978) sobre o sistema funerário e a noção de pessoa entre os Krahó, grupo jê. O primeiro, além de me dar uma linguagem para pensar a cosmologia araweté dentro de um horizonte tupi-guarani, serviu-me para consolidar a idéia de que a metafísica araweté concebe a condição humana ou social como um lugar precário e instável, um intervalo entre formas do extra-social: Natureza e Sobrenatureza, mundo animal e mundo divino. Foi este livro que me permitiu ver, ainda, a importância decisiva da temporalidade e do devir nas cosmologias tupi-guarani, em detrimento daquela ênfase na espacialidade como domínio privilegiado de inscrição do social, característica do more geometrico das sociedades jê. A partir daí, propus um modelo da cosmologia tupi-guarani onde a dimensão temporal engloba a espacial; onde, na primeira, o fim predomina sobre a origem; na segunda, a verticalidade sobre a horizontalidade; onde, finalmente, o extra-social engloba hierarquicamente o humano/social, a alteridade precedendo e determinando a identidade. Tentei ainda mostrar como o canibalismo tupi-guarani era um dispositivo central desta cosmologia, que consolidava em uma só figura a questão da temporalidade e a da alteridade determinadora.

O trabalho de Carneiro da Cunha foi outra inspiração importante. Sua análise da morte serviu de modelo para muito do que escrevi; suas considerações sobre a escatologia ajudaram-me a precisar a distintividade da concepção araweté. Se Manuela pôde definir a escatologia krahó como uma reflexão sobre as condições de possibilidade do socius, sugeri que a escatologia araweté é mais que isto: é um espaço de relações imediatamente sociais; na verdade, é o espaço da relação social por excelência — a aliança entre os deuses e homens.

Um dos aspectos que mais me intrigava na relação dos humanos com os Maï era a mistura de antagonismo e desejo. O deuses eram ao mesmo tempo classificados como inimigos canibais e pensados como araweté perfeitos. Os mortos, devorados e refeitos, casam-se com estes deuses. Quando eles vêm à terra, prelibam alimentos e bebidas oferecidos pelos humanos; e toda a organização ritual do grupo gira em torno de festas onde os deuses e mortos são os convidados de honra. Logo me ficou claro que os deuses são uma espécie de afins transcendentais dos viventes, a quem se ligam por relações de casamento e prestações alimentares. Demorei a entender o que eles davam em troca de cônjuges e de comida; agora estou certo de que é a vida: a cosmologia araweté fala de um apocalipse provocado pelo desabamento do céu, e uma série de indícios (pois as pessoas não gostam de mencionar estas coisas) sugere que os mortos e a comida cerimonial são os penhores da boa-vontade dos Maï, desta vida provisória terrestre de que os humanos se beneficiam.

Os deuses encarnavam assim a ambigüidade característica das relações de afinidade no pensamento ameríndio: necessárias mas perigosas, elas fundam o socius, mas trazem para dentro dele a exterioridade predatória. Ora, a vida social araweté me parecia desmarcar deliberadamente as relações de afinidade; ao contrário de tantas culturas do continente, não há regras de evitação onomástica ou comportamental entre afins. Eles professam também um ideal de endogamia de parentela (e traços do matrimônio clássico dos tupi-guarani, com a filha da irmã), que sugere uma vontade de ficar “entre parentes”, dispensando ao máximo a afinidade. Mais ainda, sua instituição mais valorizada e evidente é um tipo de amizade formal entre não-parentes fundada na partilha de cônjuges: uma relação, exatamente, de “anti-afinidade”. Ela serve de modelo genérico de toda relação social com estranhos, ocupando assim o lugar que a maioria das sociedades ameríndias concede à afinidade. Era tudo isto que dava à sociedade araweté este aspecto amorfo, pouco estruturado segundo as linhas canônicas do mundo primitivo, rebelde à aliança e à reciprocidade instituinte. Mas acreditei ter achado uma resposta: a aliança em sua forma clássica de dispositivo sociogenético — a troca matrimonial e a relação de afinidade — havia sido, como tantas outras coisas na cultura araweté, deslocada da terra para o céu, ou melhor, para as relações entre a terra e o céu, entre humanos e divindades. A teologia araweté era diretamente uma sociologia, e não um fantasma seu; a sociedade incluía os deuses e os mortos; e sua metade visível, o mundo humano, era a parte subordinada de uma estrutura hierárquica complexa, fundada na reciprocidade diacrônica e assimétrica entre os humanos mortais e os canibais imortais.

A determinação do estatuto “afinal” da alteridade divina muito se aproveitou das análises de Manuela sobre a identificação krahó entre mortos e afins (um tema que aparece em numerosas etnografias, mas que ela soube explorar muito bem). Um outro aspecto de seu trabalho também foi útil ao meu. Sua definição da pessoa krahó por processos de dupla negação, onde as identidades se constituem pelo emparelhamento com “antônimos”, onde algo só é plenamente si mesmo no momento de sua negação por uma figura contrária, onde “eu sou aquilo que o que eu não sou não é” (Carneiro da Cunha), pareceu-me oferecer um contraste fascinante com os dispositivos araweté (e tupi-guarani em geral) de construção da pessoa e de posição de identidades. O juízo ontológico krahó é um perfeito exemplo de juízo analítico, fundado em uma lógica da oposição diacrítica. Ora, o “método canibal” da escatologia araweté e da sociologia guerreira dos tupinambá parece-me antes ser um caso de juízo sintético a priori, onde a suplementaridade predomina sobre a complementaridade, onde a produção da identidade exige uma saída para fora do “sujeito”, uma incorporação da alteridade de um modo dinâmico, sacrificial mais que totêmico, metonímico mais que metafórico, onde a posição de “eu” e de “outro” reverberam sem se deter em nenhum dos pólos; onde, finalmente, a predicação analítica e atributiva dá lugar à predação sintética e incorporante. Esta linha de raciocínio serviu para que eu tentasse marcar a singularidade do canibalismo tupi‑guarani dentro das concepções da alteridade características das cosmologias ameríndias, singularidade que resumi na fórmula: “o Outro não é um espelho, mas um destino”.

Ao final desta interpretação da cosmologia araweté, embarquei em uma reanálise do complexo guerreiro-canibal dos antigos Tupinambá, tomando Florestan Fernandes como principal interlocutor. Florestan tratou a vingança antropofágica tupinambá como um culto aos mortos do grupo e uma comunhão com os ancestrais. O cativo de guerra era uma vítima sacrificial que restabelecia a continuidade da sociedade com seu próprio passado, a vingança canibal era movida por uma “dialética interna”. A religião tupinambá, de que a guerra era um instrumento, era um culto durkheimiano da eunomia e da restauração do “Nós coletivo”.

Para chegar a esta interpretação, Florestan precisou relegar ao plano das “funções derivadas do sacrifício humano” um aspecto a meu ver essencial, a saber, o valor iniciatório da execução dos cativos (condição indispensável ao acesso dos homens à condição de adultos, capazes de terem filhos legítimos), bem como a máquina da renomação e renominação que girava em torno da proeza guerreira. Precisou subordinar as funções criativas e produtivas da guerra às suas funções restauradores e recuperadoras, o futuro ao passado, a relação com os outros ao “Nós coletivo”. Como alternativa, propus uma visão onde os inimigos, mais que intermediários entre vivos e mortos do grupo, eram um pólo essencial de atração da sociedade; onde a vingança era um fim e não um meio, e a morte de um membro do grupo um mero pretexto para a reprodução da relação social instituinte, aquela que se travava com os inimigos. Assim como a sociedade araweté inclui os Maï, a sociedade tupinambá incluía seus inimigos: era preciso repensar a geometria simples de uma partição entre “interior” e “exterior” do socius.

Analisei o simbolismo do cativo como cunhado e como animal de estimação, sua relação com o domínio feminino, sua função de prestação matrimonial, sua “uxorilocalização” forçada e as relações disto com a regra de residência tupinambá, as conexões entre o casamento preferencial hiper-endogâmico (avuncular) e a “hiper-exogamia” que era o casamento dos cativos com mulheres do grupo. Sublinhei os valores escatológicos da morte em mãos inimigas, ligados à problemática pan-tupi de imortalização pela sublimação da porção corruptível da pessoa — analisei o canibalismo do ponto de vista da vítima, como sendo o ritual funerário ideal. Finalmente, arrisquei‑me a enfrentar a questão do rito canibal, de interpretação teórica espinhosa. As leituras “simbolistas” e estruturalistas do canibalismo, que pretendem ir além da imputação de crenças psico-bromatológicas aos selvagens (do tipo “incorporação da força” dos inimigos), esbarram num problema básico: o ato mesmo do comer o humano. Pois os efeitos simbólicos visados pelo ritual, tal como imaginados pelos analistas, poderiam ser realizados sem a literalidade dos Tupinambá — como o são em tantas culturas do planeta —, que comiam de fato seus cativos de guerra. A passagem ao ato é um problema maior para as teorias do ritual. Foi assim que, forte do que divisara na escatologia araweté, vim a definir o canibalismo tupinambá como um processo de determinação lógica pelo inimigo, uma “incorporação da inimizade”, que redundava em um “pôr-se no lugar do outro” de forma a incorporar seu ponto de vista mais que sua substância. Meu argumento, simplesmente posto, é que o canibalismo era um modo de virar inimigo, e isto era o processo definidor da identidade tupinambá, identidade constituída intrinsecamente pela, ou melhor, na alteridade.

 

O perspectivismo

 

De um ponto de vista mais abstrato, meu trabalho consistiu sempre em tentar problematizar e complexificar os dualismos característicos do repertório conceitual de nossa disciplina, como também aqueles, e isto é o realmente importante, que costumam ser atribuídos pela antropologia aos sistemas de pensamento da Amazônia indígena: organizações dualistas, classificações sociais binárias, dualidades míticas e cosmológicas, e assim por diante. Os escritos sobre os Yawalapíti abordaram a questão da irredutibilidade da cosmologia xinguana ao dualismo natureza/cultura, sugerindo um caráter contínuo e ternário, antes que descontínuo e binário, das classificações e processos simbólicos xinguanos. A monografia sobre os Araweté, em seguida, propôs uma conexão entre ‘sociologia’ e ‘cosmologia’ — relações dos humanos entre si e relações entre os humanos e os sobre-humanos — que buscava passar ao largo da dualidade durkheimiana entre ‘instituição’ e ‘representação’, definindo uma configuração hierárquica complexa, mas ontologicamente homogênea, a opor-ligar os deuses e os humanos, e conseqüentemente os vivos e os mortos, os xamãs e os guerreiros, as mulheres e os homens, os concidadãos e os inimigos. Meus trabalhos sobre o parentesco apontaram as linhas de instabilidade que atravessam uma matriz dualista difundida na Amazônia, insistindo na natureza triádica, concêntrica e hierárquica — antes que diádica, diametral e eqüipolente — da oposição entre consangüinidade e afinidade, e resultaram na proposição de um novo conceito, o de afinidade potencial. Finalmente, os trabalhos sobre o perspectivismo consolidados nos caps. 7 e 8 retomam, em termos bem mais ambiciosos, a questão da oposição natureza/cultura, ligando-a à antinomia moderna do ‘relativismo’ e do ‘universalismo’, de modo a submeter esta última a uma crítica propriamente etnográfica.

O outro fio condutor, este mais concreto, foram os temas da pessoa e da corporalidade, e sua conexão com uma idéia-valor característica, que chamei de ‘predação ontológica’, e que me pareceu constituir o regime geral de subjetivação ou personificação na maioria, senão todas, as culturas da Amazônia indígena. Minha aprendizagem etnográfica junto aos Yawalapíti concentrou-se no problema da fabricação social do corpo e em seu recíproco, a inscrição corporal dos ‘processos’ e ‘identidades’ sociais. O trabalho sobre os Araweté, embora menos centrado na corporalidade, tratou das concepções tupi-guarani sobre a pessoa, desenvolvendo o tema da predação ontológica e explorando seu esquema principal, o canibalismo. Esse complexo amazônico da ‘predação’ (assim o chamei para opô-lo provocativamente ao complexo modernista da ‘produção’; hoje talvez o chamasse por outro nome) foi igualmente o foco de meus estudos sobre a dinâmica da afinidade e o horizonte para uma reelaboração teórica, ainda incipiente, da noção de ‘troca’. Os trabalhos mais recentes, por fim — aqueles sobre o perspectivismo e sobre a passagem do virtual ao atual na socialidade indígena —, tentam uma determinação da economia conceitual do ‘corpo’ e da ‘alma’ nas cosmologias ameríndias.

Corpo, alma, pessoa, natureza e cultura, predação, troca, afinidade potencial, perspectiva — estes são os nomes dos temas, ou melhor, dos conceitos que foram surgindo em minha reflexão sobre a etnologia amazônica. Como o leitor advertirá, tais palavras recebem sentidos cada vez mais precisos ao longo dos textos a seguir, porque cada vez mais motivados teórica e etnograficamente, e portanto cada vez mais diferentes de seus sentidos usuais. Esses conceitos são o resultado provisório de um trabalho desde sempre orientado por um desiderato maior: contribuir para a criação de uma linguagem analítica à medida (à altura) dos mundos indígenas, o que significa dizer uma linguagem analítica radicada nas linguagens que constituem sinteticamente esses mundos. Sua elaboração envolve forçosamente uma luta com os automatismos intelectuais de nossa tradição, e não menos, e pelas mesmas razões, com os paradigmas descritivos e tipológicos produzidos pela antropologia a partir de outros contextos socioculturais. O objetivo, em poucas palavras, é uma reconstituição da imaginação conceitual indígena nos termos de nossa própria imaginação. Em nossos termos, eu disse — pois não temos outros; mas, e aqui está o ponto, isso deve ser feito de um modo capaz (se tudo ‘der certo’) de forçar nossa imaginação, e seus termos, a emitir significações completamente outras e inauditas. A antropologia, como se diz às vezes, é uma atividade de tradução; e tradução, como se diz sempre, é traição. Sem dúvida; tudo está, porém, em saber escolher quem se vai trair. Espero que minha escolha tenha ficado clara. Quanto a saber se a traição foi eficaz, eis aí uma questão que não me cabe responder.

 

* * *

 

Minha contribuição mais recente ao americanismo e, ouso acreditar, à teoria antropológica mais ampla foi a estabilização conceitual do “perspectivismo” cosmológico ameríndio. Este foi um rótulo que tomei emprestado ao vocabulário filosófico moderno para qualificar um aspecto muito característico de várias, senão todas, as cosmologias ameríndias. Trata-se da noção de que, em primeiro lugar, o mundo é povoado de muitas espécies de seres (além dos humanos propriamente ditos) dotados de consciência e de cultura, e, em segundo lugar, de que cada uma dessas espécies vê a si mesma e às demais espécies de modo bastante singular: cada uma se vê como humana, vendo todas as demais como não-humanas, isto é, como espécies de animais ou de espíritos. Assim, por exemplo, as onças se vêem como gente, vendo ainda vários elementos de seu universo como se consistissem de objetos culturais: o sangue dos animais que matam é visto pelas onças como cerveja de mandioca, etc. Em contrapartida, as onças não nos vêem, a nós humanos (que naturalmente nos vemos como humanos), como humanos, mas sim como animais de presa: porcos selvagens, por exemplo. É por isso que as onças nos atacam e devoram. Quanto aos porcos selvagens (isto é, aqueles seres que vemos como porcos selvagens), estes se também se vêem como humanos, vendo, por exemplo, as frutas silvestres que comem como se fossem plantas cultivadas — mas vêem a nós humanos como se fôssemos espíritos canibais (pois os caçamos e comemos).

Há vários desdobramentos e implicações desse complexo de idéias: por exemplo, que a forma corporal de cada espécie é uma roupa ou invólucro que oculta uma forma interna humanóide; ou ainda, que os xamãs são os únicos indivíduos capazes de assumir o ponto de vista de mais de uma espécie além da sua própria; ou ainda, que, dada a humanidade reflexiva de cada espécie, a caça e o consumo de carne animal são empresas metafisicamente problemáticas, jamais livres de conotações canibais. Tudo isso assenta em um pressuposto fundamental, a saber, o de que o fundo comum da humanidade e da animalidade não é, como para nós, a animalidade, mas a humanidade. Os mitos indígenas descrevem uma situação originária onde todos os seres eram humanos, e a perda (relativa) desta condição humana pelos seres que vieram a se tornar os animais de hoje. Ou seja, se para nós os humanos “foram” apenas animais, e se tornaram humanos, para os índios os animais “foram” humanos, e se tornaram animais. Nós pensamos, é claro, que os humanos fomos animais mas continuamos a sê-lo, por baixo da “roupa” sublimadora da civilização; os índios, em troca, pensam que os animais, tendo sido humanos como nós, continuam a sê-lo, por baixo de sua roupa animal. Por isso, a interação entre humanos propriamente ditos e as outras espécies animais é, do ponto de vista indígena, uma relação social, ou seja, uma relação entre sujeitos.

Entre as conseqüências filosóficas mais interessantes dessa doutrina perspectivista indígena está uma concepção das relações entre “Natureza” e “Cultura” radicalmente distinta daquela que vigora, em versões historicamente variáveis, na tradição ocidental, desde o par phusis / nomos da Grécia antiga ao par nature / société do Iluminismo.

 

 

Sobre a Amazônia e a antropologia

 

Gostaria de concluir com algumas palavras sobre a Amazônia, pois é aqui que nos encontramos. Gostaria de terminar falando sobre o ambientalismo, o futuro dos povos indígenas, e o papel da antropologia.

Os etnólogos não se destacam por sua grande frequentação das páginas e telas da mídia. Isso se deve, creio, menos  a alguma timidez ou incompetência de nossa parte que à ignorância e descaso verdadeiramente assombrosos manifestos pela maioria da intelectualidade (baixa, média e alta) do país, relativamente aos povos indígenas que aqui vivem. A impressão que tenho é que o “Brasil” não quer saber de índio, e sempre morreu de medo de ser associado, “lá fora”, a esse personagem, que deveria ter sumido do mapa há muito tempo, e  virado uma pitoresca e inofensiva figura do folclore nacional. Mas os índios continuam aí, e vão continuar. E, como vimos nas duas últimas décadas, eles começaram a ser admitidos no Brasil oficial-mediático (e mesmo constitucional). Mas isso foi depois que foram legitimados na metrópole. A Amazônia precisou passar pela Europa para se tornar visível do litoral do Brasil. Antes assim.

Devastamos mais da metade de nosso país pensando que era preciso deixar a natureza para entrar na história; mas eis que esta última, com sua costumeira predileção pela ironia, exige-nos agora como passaporte justamente a natureza. Para o melhor ou o pior, nossa estrada de acesso ao universal continua a passar pela mata. Se este é mesmo o caso, então, depois de séculos de hesitação entre o orgulho e a vergonha, a incúria e a rapina, é preciso que o país acerte suas contas com o próprio imaginário, trocando a ambivalência pela dialética — por uma nova dialética da natureza.

Símbolo onde veio inesperadamente se ocultar a physis neste fim de século, a Amazônia é hoje a arena onde se joga uma partida decisiva: os atores nela envolvidos, conjugando de modo inédito a micro- e a macro-política, disputam o sentido do futuro. Neste jogo, outra novidade, o Estado é apenas mais um participante, não o juiz ou o dono da bola. Entre o Estado e a Natureza, estas duas totalidades imaginárias interconstituídas por um confronto de onde sempre esteve excluída a sociedade — ora “representada” pelo primeiro, ora assimilada à segunda —, abre-se agora o espaço para uma nova geo-política. Trocando a naturalização da política pela politização da natureza, ligando diretamente a terra à Terra em detrimento das velhas territorializações estatais, a nova geopolítica do ambientalismo recusa ao Estado a guarda do infinito e o privilégio da totalização.

Podem-se ver as coisas, é claro, pela outra ponta, enxergando o antigo no novo. Cosmologia do capitalismo tardio, ressacralização da história e da geografia que fecha o ciclo aberto com a expansão quinhentista do Ocidente, reterritorialização no plano do ecúmeno de um movimento secular de desterritorialização local, nacional e continental, o discurso ecologista seria a vingança da Totalidade. Ele anunciaria o advento de um medievo pós-iluminista: o discurso da finitude e da transcendência, deixando o espaço–tempo das relações entre o humano e o divino, seria agora articulado no confronto entre a sociedade e a natureza. A selva amazônica ocuparia, hoje não mais apenas alegoricamente, o lugar da catedral gótica: a copa das árvores se torna o dossel sagrado, a Hiléia toma a forma do Espírito. E a Sociedade, que há não muito tempo atrás era a matriz e o modelo de toda ordem e de qualquer todo, vê-se agora como desordem e causa de desordem, como hubris suicida que só poderá se redimir se aceitar sua subordinação a uma totalidade e a uma ordem que a englobam e determinam.

Seja, pode-se tomar o ambientalismo como uma espécie de repetição do cristianismo, a minar e ao mesmo tempo reinvestir, em nome de totalidades mais totais e de universais mais concretos, as míopes abstrações imperiais das Romas modernas — com os brasileiros, aliás, no equívoco papel de bárbaros a sermos convertidos pelos missionários desta neo-religião da classe média (um replay naturista da velha ética protestante); bárbaros, ainda por cima, depositários do Graal amazônico e fiadores da salvação planetária. Seja, enfim; mas ele pode também ser visto como um discurso radicalmente novo, que recusa algumas partilhas fundadoras e categorias básicas da chamada racionalidade ocidental. Em particular, ele rejeita a idéia de que o Homo sapiens é a espécie eleita do universo — por outorga divina ou conquista histórica —, titular exclusiva da condição de Sujeito e agente frente a uma natureza vista como Objeto e paciente, alvo inerte de uma praxis prometeica. Ele problematiza a categoria da Produção enquanto último avatar da transcendência — a idéia de que o humano produz e se produz contra o não-humano, movimento infinito de espiritualização que é negação de uma matéria primeira, produção–separação da natureza. Em troca, ele proporia uma internalização da natureza, uma nova imanência e um novo materialismo — a convicção de que a natureza não pode ser o nome do que está fora, pois não há fora, nem dentro. Esta nova dialética da natureza depende de uma transmutação dos valores, capaz de decidir que o supremo interesse humano exige o abandono de uma perspectiva antropocêntrica; capaz de aceitar que a natureza é sempre a categoria de uma cultura, da qual recebe desígnios e significados arbitrários, e que ela é a idéia de algo que escapa a todo sentido e ignora qualquer desígnio: o real, sempre à nossa espera a cada curva do caminho.

Se a entendemos assim, como idéia do real, então natureza designa o limite absoluto da história. Esta é a paisagem de nossa época: o ecúmeno foi saturado pelo humano, a cultura se tornou coextensiva à natureza, ecologia e antropologia são hoje coincidentes. Discurso do fechamento da fronteira planetária, o ambientalismo impõe uma revisão drástica dos paradigmas do progresso e do desenvolvimento indefinidos, que continuam guiando nossas formas econômicas e projetos ideológicos. Nossa concepção linear e cumulativa de história — estruturalmente cega à estrutura, às regulações sistêmicas e às causalidades circulares — demorou demais a acordar para a constatação de que a miséria, a fome e a injustiça não são o fruto do caráter ainda parcial, incompleto, da marcha do progresso, mas seus “sub-produtos” necessários, que aumentam à medida que tal marcha prossegue na mesma direção. O terceiro mundo já é, porque sempre foi, parte do primeiro mundo, e está em toda parte. Atravessamos o século XX com a cabeça do século XIX; o choque do futuro promete ser duro para todos.

 

* * *

 

Em um país que teve (e é) um Estado antes de ter (e ser) uma sociedade, o ambientalismo ganha uma inflexão peculiar. Se alhures a questão ambiental é em última análise uma reflexão escatológica sobre as escolhas que constituíram o Ocidente, no Brasil ela está, como quase tudo, atrelada à perene demanda por uma identidade nacional — e identidade nacional é, por aqui, assunto de Estado. Se nos países exportadores do ambientalismo este desenha o horizonte por excelência do universal, para nós ele hesita entre um discurso cósmico e  uma nova figura da paranóia xenófoba. Afinal, a Amazônia é nossa, e esta conversa de planeta pode não passar de um conto do vigário dos senhores do próprio. “Desenvolver” ou “preservar” a Amazônia é uma questão de foro íntimo do Brasil — soberania, soberania… Se ainda estamos a desbravar o país, como poderíamos prestar ouvidos a patranhas sobre o mal-estar da civilização? Os ecologistas, se não são anti-patrióticos agentes do imperialismo, são no mínimo tolos ingênuos que o servem à própria revelia… Eis assim que o velho refúgio dos patifes estaria em rota de colisão com o novo refúgio dos patetas.

Há, sem dúvida, muitos “ecologistas” patetas — como os há espertalhões, hipócritas, oportunistas e outras variedades. Mas, assim como há patriotas (provavelmente a maioria) que não são Tartufos, muitos ambientalistas sabem o que fazem, e qual o tamanho da tarefa que se impuseram, que é a de repensar a sociedade brasileira, em si mesma e no desconcerto das nações.

Cabe-nos reinventar uma relação com a natureza (que se é mãe, é também filha da invenção), o que exigirá uma reinvenção da sociedade. É preciso se convencer de uma vez por todas que a identidade de uma nação não é jamais causa, mas resultado de uma sociedade organicamente constituída, e que esta identidade e esta sociedade não se constituem por um fiat militar, burocrático ou mediático. Se o Brasil não quiser perder o tal bonde da história, então precisa, em lugar de encorajar o capitalismo selvagem, aprender a capitalizar a selva (e não estou falando de “agrobusiness”), transformando a natureza em símbolo da cultura; em vez de entoar a conveniente cantilena sobre a Amazônia e a cobiça internacional, carece coibir a escandalosa rapinagem nacional nesta região; antes de choramingar a propósito do cinismo colonialista do primeiro mundo (ao mesmo tempo em que mostra uma constrangedora ânsia de identificação a ele) urge desmontar a máquina miserável do colonialismo interno, que trata os povos indígenas como obstáculo à padronização da nacionalidade, e que usa a Amazônia como válvula de segurança de uma estrutura agrária iníqua. O movimento ambientalista não é anti-patriótico; ele é sim, quando tomado em seu sentido radical — não como estetização, mas como politização da natureza —, um levante contra os donos e os usos ilegítimos da pátria.

A “ecologia”, é certo, é um discurso importado — como, de resto, o resto. Esqueça-se o clichê marxista sobre as idéias fora do lugar, em si mesmo um pouco deslocado e anacrônico. O próprio do discurso ambientalista, sua novidade específica, está em ser uma idéia sobre o lugar. Ele é uma topologia histórico–política que redefine as relações entre o local e o global, o particular e o geral, a mais curta e a mais longa das durações. Trata-se de algo mais que um novo tema cultural: é o elemento onde se moverá por muito tempo todo discurso político e filosófico. O fato do mercado ter-se apropriado de uma quantidade de chavões e palavras de ordem “ecológicas”, vendendo a natureza como sempre vendeu a cultura, não deve assustar ninguém. É da natureza do capitalismo transformar seus limites em combustível (o que não quer dizer que possa rodar para sempre). Há ambientalismo para todos os gostos: há ambientalismo comercial como há ambientalismo chapa-branca, há alternativo como há oficial, há diletante como especialista, de miolo mole como de cabeça dura, de ocasião como de convicção, de direita como de esquerda. Atravessando as fronteiras entre a política partidária e os movimentos sociais, entre os dispositivos estatais e as organizações não-governamentais, entre o público e o privado, a questão ambiental e seu foco privilegiado, a Amazônia, são o espelho onde o país contempla sua imagem incerta e fragmentada, sua origem e seu destino, seu lugar no mundo e na história.

 

* * *

 

Carreguei deliberadamente nas tintas, no que precede. Apesar da considerável atenção que a “ecologia” vem recebendo no Brasil hoje, nos meios de comunicação, nas plataformas políticas e nas decisões governamentais, deve-se constatar que o tema ainda não chegou a ultrapassar o plano da retórica e das concessões à moda. Ele tampouco parece estar sendo levado realmente a sério por diversos setores “progressistas” da sociedade nacional, provavelmente por acharem que temos problemas mais urgentes a resolver que o desmatamento da Amazônia. À parte uma certa desconfiança provinciana diante de questões cujo foco de difusão é alógeno, podem estar também atuantes resquícios (ou bem mais que isso, no presente governo) do desenvolvimentismo modernizador característico das elites intelectuais do país. Isto me parece preocupante: em primeiro lugar, a questão ambiental aponta para interesses vitais da espécie humana, e, apesar de alguns esforços em contrário, os brasileiros continuamos pertencendo a ela; em segundo lugar, os países “subdesenvolvidos” serão, como sempre, os grandes perdedores no processo de degradação acelerada do ambiente terrestre — superpopulação, alterações climáticas, fome, inchação das metrópoles —; em terceiro lugar, o saque em grande escala e a ocupação predatória da Amazônia são hoje peças essenciais para a reprodução do modelo iníquo de desenvolvimento nacional. Por fim, não custa lembrar que “ambiente” é um outro nome para “condições de existência”; a crítica ambientalista é uma crítica das presentes condições de existência da população brasileira, na cidade, no campo e na selva.

Queiramos ou não, o Brasil se amazonizou, é nesta região que se travam as grandes batalhas econômicas, políticas e ideológicas do país. Leia-se o presente livro; aqui se verá como a história dos últimos trinta anos está sendo decidida na Amazônia: as absurdas estradas da ditadura, as maciças migrações que permitiram a “modernização” agrária do Sul e a manutenção do arcaísmo oligárquico do Nordeste, os mega-projetos de mineração e de geração de energia, o mega-agronegócio, a criação de uma casta de grandes empreiteiras sócias do Estado, a consolidação do contrabando e do tráfico de drogas, a canalização estratégica de vultosos empréstimos internacionais, o surgimento de novos atores e forças políticas — os povos indígenas, os sindicatos rurais —, e finalmente a entrada do país no cenário ideológico mundial. A selva e a cidade nunca estiveram tão visceralmente unidas como no presente momento de nossa história.

 

* * *

 

Por motivos profissionais, os antropólogos “descobriram” a Amazônia muito antes que esta se tornasse uma preocupação corrente; pelos mesmos motivos, têm sido testemunhas diretas dos absurdos que ali se cometem em nome do desenvolvimento do país. Eles estão, sobretudo, em posição de desmentir algumas das falácias típicas sobre a região, que sustentam o projeto de sua ocupação predatória ou sua mitificação como paraíso da natureza intocada.

Foram os antropólogos os primeiros a denunciar o erro grosseiro que consiste em considerar a selva amazônica como grande vazio demográfico, mata virgem à espera de gente. A Amazônia é uma região ocupada milenarmente por povos indígenas, e secularmente por parcelas da população nacional de origem européia e africana que se adaptaram aos ritmos e exigências da floresta. Antes da enorme catástrofe que dizimou — dizimou, não exterminou — seus ocupantes originais (refiro-me à invasão européia), esta era uma região povoada, de modo mais ou menos denso, por sociedades que modificaram o ambiente amazônico sem destruir suas grandes regulações ecológicas. A “mata virgem” tem muito de mito: como hoje começamos a descobrir, boa parte da cobertura vegetal amazônica, sua distribuição e composição específica, é o fruto de milênios de intervenção humana; a maioria das plantas úteis da região proliferaram diferencialmente em função das técnicas indígenas de aproveitamento do território; porções não desprezíveis do solo amazônico são antropogênicas, indicando uma ocupação intensa e antiga. Isto que chamamos “natureza” é parte e resultado de uma longa história cultural.

Não só a região amazônica foi o cenário de desenvolvimento de numerosas culturas e civilizações, como continua a ser ocupada pelos índios e demais povos da floresta — seringueiros, camponeses, pescadores — cuja população, apesar de tudo, cresce. A tendência a vê-la como vazia é, sobre empiricamente falsa, politicamente maldosa. Os povos indígenas, em particular, têm ali o cada vez mais exíguo espaço onde tentam exercer sua autonomia sócio-cultural; seus direitos sobre os territórios que ocupam são anteriores à formação do país. Esvaziar retoricamente a Amazônia é desconhecer o direito destes povos à existência, tratando-os como inimigos que cabe exterminar ou assimilar.

Há tempos, andava em voga, e não precisa de muito para voltar a andar, a “teoria” de que a existência de povos indígenas culturalmente autônomos na Amazônia é uma ameaça à soberania nacional, por se constituir em cabeça de ponte potencial para a invasão de potências estrangeiras; no mínimo, há o perigo da “balcanização”, dizia-se há alguns anos atrás. Ora, hoje está mais ou menos claro que o separatismo, se vier efetivamente a se tornar um tema relevante, não começará pelos povos indígenas da Amazônia, mas pelo Sul do país; e que ele não se deverá às diferenças culturais que distinguem os índios dos demais brasileiros, mas a desigualdades regionais intoleráveis e a uma crise econômica e política grave, cuja responsabilidade certamente não recai sobre os índios. Quanto a uma invasão sorrateira da Amazônia por gringos, com a colaboração dos “quistos étnicos” ameríndios, aqui entramos no domínio da fantasia maliciosa (invasão se houver não vai ser sorrateira, e não será com a ajuda dos índios), cujo verdadeiro objetivo parece ser o de legitimar a assimilação forçada dos índios. Acrescente-se a isto uma vergonha provinciana de se admitir que há índios dentro de nossas fronteiras, como se fosse este o obstáculo a nosso tão almejado ingresso no Olimpo da civilização; e complete-se a receita com um ingrediente essencial: a confessada cobiça pelos recursos naturais que, por estarem nas terras indígenas, ainda não foram devida e completamente rapinados.

“Amazônia” e “natureza” evocam na consciência urbana os povos indígenas, antes de mais nada. Ora, se os índios desempenham para muitos, e poderosos, o papel de símbolo negativo da nacionalidade — de seu atraso, sua perigosa heterogeneidade, sua não-europeidade —, a vulgata ecologista contemporânea, simpática como seja aos ameríndios, equivoca-se por outros motivos. A imagem geral que se filtra até nós é a de que os povos indígenas estão em uma espécie de sintonia natural com a natureza. Tal imagem não é privilégio dos leigos; uma parcela significativa de estudos antropológicos, tributários de um pseudo-darwinismo reducionista, tende a apresentar os povos amazônicos sob esta luz, isto é, como populações animais reguladas, em sua composição, distribuição e atividade, por parâmetros naturais, isto é, parâmetros independentes da atividade simbólica humana.

Por outro lado, e de modo parcialmente contraditório com o que precede, a ideologia ecológico–progressista costuma representar os povos indígenas como possuidores de uma quantidade de “segredos da floresta” inacessíveis à ciência ocidental. Mais uma vez, isto tem recebido o apoio bem-intencionado de alguns estudiosos. O resultado final é que as culturas indígenas são valorizadas por se constituírem em um reservatório de tecnologias úteis para a exploração adequada da Amazônia  — o que é uma instrumentalização de nossa relação com os povos indígenas, fruto de uma atitude utilitarista e etnocêntrica, que parece só admitir o direito à existência dos outros se estes servirem a algo para nós.

Não há dúvida que os povos amazônicos encontraram, ao longo de milênios, estratégias de convivência com seu ambiente que se mostraram com valor adaptativo; que para tal desenvolveram um saber técnico sofisticado, e infinitamente menos disruptivo das regulações ecológicas da floresta que as técnicas brutalmente míopes utilizadas pela sociedade ocidental; que este saber deve ser estudado, difundido e valorizado urgentemente; que ele poderá ser, em última análise, o passaporte para a sobrevivência, no mundo moderno, das sociedades que o produziram. Mas há aspectos problemáticos nas representações evocadas acima, que residem nas categorias mesmas que as orientam.

Em primeiro lugar, a “ecologização” dos índios desconsidera as relações constitutivas entre este saber técnico e suas condições sociais de emergência, distribuição e exercício. A relação entre os índios e a floresta é mediada necessariamente por suas formas de organização sociopolítica; a natureza é natureza para uma sociedade determinada, fora da qual se reduz a uma abstração vazia. Dessocializar este saber é expropriá-lo, e inutilizá-lo praticamente.

Em segundo lugar, a relação entre as sociedades indígenas e o ambiente amazônico não é a de uma adaptação passiva das primeiras ao segundo (que contrastaria assim com a destruição ativa levada a cabo pela sociedade nacional), mas a de uma história comum, onde sociedade e ambiente evoluíram em conjunto. Como dissemos, hoje se constata que a floresta amazônica, em seus aspectos fitogeográficos, faunísticos e pedológicos, condicionou tanto a vida humana quanto foi condicionada por esta. 

As relações com a natureza não são assim nunca, tratando-se de sociedades humanas, relações naturais, mas relações essencialmente sociais. Não só elas se travam a partir de formas sociopolíticas determinadas, como pressupõem dispositivos simbólicos específicos, isto é, instrumentos conceituais de “apropriação” do real, cuja característica distintiva é serem culturalmente especificados, isto é, relativamente arbitrários, e não determinados univocamente por parâmetros objetivos.

De certo modo, este aspecto eminentemente social das relações entre sociedade e natureza recebe um reconhecimento explícito nas culturas indígenas, em contraste com a concepção objetivante de natureza entretida pela modernidade ocidental. Com efeito, se pudéssemos caracterizar em poucas palavras uma atitude essencial das culturas indígenas — atitude que nos leva (in)justamente a defini-las como “primitivas”, “animistas” etc. —, diríamos que as relações entre a sociedade e os componentes de seu ambiente natural são pensadas e vividas como relações sociais, isto é, relações entre sujeitos. O saber técnico indígena, se está fundado como o nosso próprio em uma teoria instrumental das relações objetivas de causalidade, está entretanto imerso em um saber simbólico fundado na postulação de um universo comandado pelas categorias da agência e da intencionalidade, isto é, por uma concepção sociomórfica do cosmos. A natureza não é, absolutamente, “natural”, isto é, passiva, objetiva, neutra e muda — os homens não têm o monopólio da posição de agente e sujeito, não são o único foco da voz ativa no discurso cosmológico. Prosseguindo com o contraste, recordemos que a categoria que comanda  as relações entre homem e natureza é, para a modernidade ocidental, a categoria da produção, concebida como ato de subordinação da matéria ao desígnio humano. Para as sociedades amazônicas, a categoria paradigmática neste contexto é a categoria da reciprocidade, isto é, a comunicação simbólica entre sujeitos que se interconstituem no e pelo ato da troca. A reprodução das sociedades indígenas é assim concebida e vivida sob o signo de uma troca de propriedades simbólicas entre os humanos e os demais habitantes do cosmos (troca que pode ser violenta e mortal, sem deixar de ser social), não de uma produção de bens materiais a partir de uma natureza informe.

Se as ideologias modernas tendem a ver as sociedades indígenas, para bem ou para mal, como parte da natureza — mas isto é verdade para toda sociedade humana  —, podemos então dizer que as culturas indígenas tendem a ver a natureza como ela mesma parte da sociedade, ou antes, como mergulhada, tanto quanto o mundo humano, em um meio universalmente social — o que não é menos verdade.

Creio, assim, que a contribuição específica da antropologia ao movimento ambientalista, em geral e em sua concentração sobre a Amazônia, está na relação que esta disciplina estabelece entre natureza e sociedade. Os antropólogos não “aprenderam com os índios a respeitar a natureza” (argumento equívoco e ligeiramente débil mental); eles aprenderam, isto sim, que não há reflexão sobre a natureza que não dependa de um arbitrário cultural, e que não há interação com o ambiente que não passe por uma forma específica de organização social. Por isto, creio que a proliferação de “quadros” antropológicos no ambientalismo brasileiro tende a tornar este politicamente mais atento às dependências mútuas entre a relação dos homens com o mundo e a relação dos homens uns com os outros. Cada sociedade tem a natureza que merece. Cabe-nos decidir qual é a nossa.