O PAPEL DOS INSTITUTOS DE PESQUISA NO ESTABELECIMENTO DE BASES TÉCNICAS E GERENCIAIS PARA O DESENVOLVIMENTO DE NOVOS FÁRMACOS E MEDICAMENTOS NO BRASIL

 

Maria das Graças M. O. Henriques

Antonio Carlos Siani

Jislaine Guilhermino Pereira

Instituto de Tecnologia em Fármacos, FIOCRUZ, RJ, Brasil

 

Introdução

 

Nos últimos 30 anos ocorreram avanços sem precedentes na medicina, produzindo substanciais ganhos em termos de expectativa de vida  Um dos principais responsáveis por esta revolução é a industria farmacêutica mundial que à partir dos anos 90, começou a lançar no mercado,  medicamentos extremamente eficientes. De poderosos analgésicos a drogas específicas para o tratamento de distúrbios graves, eles devolveram a milhões de pessoas uma qualidade de vida que parecia perdida para sempre. No entanto esta fantástica revolução deixou  de diferentes modos, a maior parte da população mundial à margem.

As populações de países em desenvolvimento, cerca de 80% da população mundial, respondem por apenas 20% das vendas mundiais de remédios. Para estas pessoas, o desequilíbrio entre suas necessidades e a disponibilidade de medicamentos é na maioria das vezes, fatal.

A indústria farmacêutica é um setor vital para que um Governo possa exercer uma de suas principais responsabilidades, que é garantir o atendimento das necessidades básicas de saúde das pessoas. No Brasil, a universalidade de acesso a medicamentos é garantida pela Constituição Brasileira e prevê a disponibilidade de remédios em hospitais e postos de saúde. Isto requer uma ação concatenada, da indústria farmacêutica e do governo, gerenciada pela esfera federal.

A eficácia do fornecimento permanente de medicamentos à população, independe dos interesses das empresas multinacionais, mas está diretamente relacionada com a capacidade de produção local, que por sua vez depende do nível de conhecimento do processo de produção, tanto de insumos como do medicamento acabado. Para que se possa dominar completamente estas tecnologias, torna-se vital que o País detenha também, o conhecimento científico e tecnológico que levam ao desenvolvimento de novos fármacos.

 

As Causas da Exclusão dos Países em Desenvolvimento da Revolução da Saúde

 

São dois os principais problemas que excluem cerca de 80% da população mundial dos avanços da medicina: O alto preço que estes medicamentos chegam ao mercado e a ausência de medicamentos para as principais doenças  infecto-parasitárias  que afligem estes povos.

 

 

O ALTO CUSTO DOS MEDICAMENTOS

 

É verdade que por sua característica investigativa, os investimentos em pesquisa e desenvolvimento de novos medicamentos são altos e de risco. De cada 10000 moléculas testadas para a criação de novos medicamentos, apenas uma chega às farmácias após passar por em média 12 anos de estudos em diferentes fases (figura 1) e consumir algo em torno de 800 milhões de dólares segundo as indústrias farmacêuticas.


 

 

 

Apesar disto, o setor farmacêutico representa um negócio altamente lucrativo. Os lucros provenientes das vendas superam em muito o investimento. Para se ter uma idéia, em 2001 as novas drogas utilizadas no tratamento de doenças cardiovasculares e do sistema nervoso central renderam 90 bilhões de dólares aos maiores laboratórios do mundo. A indústria farmacêutica, como um todo, movimenta anualmente 363 bilhões de dólares e está crescendo a uma taxa de 14%.  É tão vantajoso, que a cada ano a indústria farmacêutica mundial supera seus gastos com pesquisa e desenvolvimento de novas drogas, saindo de 2 bilhões em 1980 para 50 bilhões de dólares em 2001. Infelizmente todo este investimento é feito apenas em países ricos aonde os centros de P&D das multinacionais se concentram. No mesmo ano de 2001, foram investidos no Brasil, o equivalente a 30 milhões de dólares e mesmo assim,  apenas na última etapa da pesquisa clínica, uma fase em que o produto já está patenteado, sendo propriedade de alguma indústria multinacional.

Com este cenário, é fácil compreender que a ausência de uma participação ativa na área farmacêutica implica em sérios  problemas para um país em desenvolvimento. Além de não gerar empregos e divisas, o governo passa a sofrer de uma dependência pesada de uma indústria multinacional e altamente competitiva, deixando todo um setor, que em última instância salva e melhora a qualidade de vidas, ao sabor das forças de economias de mercado.

Esta falha não recai exclusivamente sobre os ombros do setor privado. Os governos têm responsabilidade final de assegurar o atendimento das necessidades básicas de saúde das pessoas. Eles têm ainda a responsabilidade de tomar as ações apropriadas quando as forças do mercado deixam de atender tais necessidades.

Nas últimas décadas, apesar da clara evidência do colapso do setor farmo-químico nos países em desenvolvimento, as iniciativas governamentais têm sido no mínimo, inadequadas.  No Brasil, por exemplo, a partir da década de 70 ocorreram frágeis iniciativas de se incentivar a internalização da produção dos princípios ativos no país. No entanto a ausência de uma política tecnológica consistente ao longo dos anos levou a um cenário atual no qual 80% dos fármacos são importados. Somente nos últimos 4 anos começou-se a dar alguma importância a área, com iniciativas voltadas principalmente para a produção de farmo-químicos. É importante citar, que iniciativas como a lei de genéricos e a produção de medicamentos anti-virais surtiram excelente efeito em curto prazo. No entanto, iniciativas voltadas para a Pesquisa e Desenvolvimento de novos medicamentos ainda são isoladas e concentradas nas universidades e institutos de pesquisa, e contam com pouco apoio governamental. O País ainda não conta com Centros de P&D preparados para atender os pré-requisitos para o registro de novos de medicamentos. As áreas de Farmacologia Pré-clínica e Toxicologia, etapas de desenvolvimento pré-clínico que não são tradicionalmente realizadas no Brasil, são as mais críticas, sendo uma etapa limitante para o desenvolvimento de fármacos no país.

 

A CRISE EM P&D DE DROGAS PARA DOENÇAS NEGLIGENCIADAS

 

Todo ano, milhões de pessoas continuam a morrer de doenças que podem ser prevenidas e tratadas. As doenças transmissíveis mataram 14 milhões em todo o mundo em 1999, a maioria em países em desenvolvimento. Uma das causas é a falta de pesquisa e desenvolvimento de medicamentos para o tratamento de doenças que atingem os mais pobres.

Há uma forte ligação entre a pobreza e a saúde. Os indivíduos dos países de renda média e baixa arcam com um ônus desproporcional de doenças, particularmente no que se refere às doenças transmissíveis. As doenças infecciosas e parasitárias respondem por 25% da carga de doenças nos países de renda baixa e média, comparados com 3% nos países de renda alta. Segundo o Banco Mundial, a eliminação das doenças transmissíveis nivelaria quase completamente o hiato de mortalidade entre os 20% mais ricos da população mundial e os 20% mais pobres.

 

FALHAS NO PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO DE DROGAS

 

Um exame apurado do processo de desenvolvimento de drogas revela exatamente onde o sistema entra em colapso. O desenvolvimento de uma nova droga a partir da pesquisa básica pode ser uma atividade complexa, que envolve alto custo e exige grande tempo de maturação. Para produzir uma droga bem sucedida, podem ser necessários milhares de possíveis compostos e sucessivas seleções, baseadas nas propriedades bioquímicas, na segurança, no desempenho clínico e em considerações do mercado. A figura 2 delineia esse processo e identifica os hiatos que ocorrem quando as perspectivas de mercado são baixas.

 

 

A comunidade de pesquisa pública, notadamente as universidades e os institutos, é primordialmente envolvida nas fases iniciais da pesquisa básica da descoberta de drogas. O know –how, a infra-estrutura e a capacidade de gerenciamento para levar essas descobertas através do processo de desenvolvimento ficam concentrados no setor Privado. Assim, o desenvolvimento final das drogas é conduzido em grande parte pela indústria privada e segundo suas próprias prioridades.

 Está claro que a indústria farmacêutica multinacional não pode encarregar-se de desenvolver os remédios necessários para o tratamento das doenças que afligem os pobres do mundo. Os governos em última análise, são responsáveis por assegurar o atendimento das necessidades dos indivíduos em termos de saúde. A atual crise em P&D em doenças negligenciadas é resultado não apenas de uma falha do mercado, mas também de uma falha de política pública.

 

CONSTRUINDO CAPACITAÇÃO NOS PAÍSES DESENVOLVIDOS

 

O estabelecimento de capacitação nos países em desenvolvimento é uma estratégia importante para estímulo à P&D. Os institutos de saúde pública de alguns países em desenvolvimento vêm desempenhando um papel cada vez mais importante no desenvolvimento de drogas. O apoio do governo tailandes à pesquisa sobre malária, por exemplo, levou ao desenvolvimento de uma versão farmacêutica moderna e eficaz da artemisinina, tradicional remédio chinês.

A pesquisa, o desenvolvimento e a produção de drogas vêm crescendo, entre outros países no Brasil, na Índia, na Coréia do Sul, na Tailândia, na Malásia e na Argentina, países que no passado não eram considerados detentores da capacidade de P&D inovadora. Algumas iniciativas para a capacitação de países em desenvolvimento, envolvem o estímulo à colaboração entre os setores público e privado nestes países. Estas iniciativas reúnem cientistas, universitários e governos trabalhando no desenvolvimento acelerado de medicamento ou vacina que será mais tarde comercializado com preços mais acessíveis por uma indústria regional.   Este modelo foi especialmente bem sucedido na Índia que hoje detêm enorme parque farmaco-químico e lidera a pesquisa e desenvolvimento de medicamentos fitoterápicos sendo capaz, não apenas de produzir grande parte dos medicamentos necessários para a população como exportar matéria-prima captando recursos no exterior.

 

A CONTRIBUIÇÃO DOS INTITUTOS DE PESQUISA NO BRASIL

 

Na Fundação Oswaldo Cruz, os Departamento de Farmacologia Aplicada e de Química de Produtos Naturais de Farmanguinhos, iniciaram um programa de Desenvolvimento de Medicamentos e Fitofármacos, dentro do programa de Biotecnologia e Recursos Genéticos do MCT durante o quadriênio 2000-2003. Neste programa, os projetos foram estruturados de maneira a atender as prioridades Institucionais em consonância com as diretrizes do Ministério da Saúde. Estes projetos foram gerenciados por um grupo multidisciplinar, interligando  as principais atividades necessárias a descoberta e desenvolvimento de novos fármacos: Química, Química Analítica, Farmacotecnia, Farmacologia e Toxicologia e deu-se especial ênfase aos estudos com produtos naturais da biodiversidade brasileira. O planejamento e a gestão dos projetos levava em conta desde o registro institucional do projeto, cronograma físico-financeiro, avaliações de viabilidade técnico-econômica, desenvolvimento dentro da regulamentação específica para cada produto e gestão de parcerias públicas e privadas. Estas ações foram acompanhadas de treinamento gerencial para os coordenadores dos projetos e também pelo treinamento dos pesquisadores em Boas Práticas de Laboratório, conhecimento da legislação específica e qualificação técnica nas etapas necessárias ao desenvolvimento de um produto. A partir de 2002, este modelo foi adotado pelo Programa de Desenvolvimento Tecnológico em Insumos para Saúde – Rede de Medicamentos (PDTIS) da Vice-Presidência de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico da FIOCRUZ, que passou a funcionar com uma rede de colaborações e servindo como um núcleo multiplicador dentro da Instituição.

 Este modelo de gestão via rede deverá funcionar a médio prazo como um embrião para a instalação de uma Indústria Farmacêutica Nacional de Pesquisa.

 

Fontes:

 

Desequilíbrio Fatal: A crise em Pesquisa e Desenvolvimento de Drogas para Doenças Negligenciadas, Médicos Sem Fronteiras, Campanha de Acesso a Medicamentos Essenciais e Grupo de Trabalho de Drogas para Doenças Negligenciadas, setembro, 2001

 

Removing Obstacles to Healthy Development, World Health Organization, Report  on Infectious Diseases, 1999

 

Superando O Desequilíbrio Fatal, Soluções para a crise de P&D de Medicamentos para Doenças Negligenciadas, Medecins Sans Frontieres, Drug for neglected Diseases Working Group Meeting, Brazil, dezembro, 2002


Anais da 56ª Reunião Anual da SBPC - Cuiabá, MT - Julho/2004