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F. Ciências Sociais Aplicadas - 4. Direito - 9. Direito Penal
DOGMA E VERDADE NO DISCURSO PENAL: ANÁLISE DE SUAS CONDIÇÕES DE POSSIBILIDADE.
David Santos Fonseca 1   (autor)   davidsfonseca@yahoo.com.br
Carlos Canêdo 2   (orientador)   canêdo@pucminas.br
1. Depto. de Ciências Penais, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG
2. Depto. de Ciências Penais, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG
INTRODUÇÃO:
O discurso de legitimação que sustenta o sistema penal necessita preencher uma série de requisitos para que possa ser veiculado e aceito em dada sociedade. Todos os elementos desse discurso penal vigente, desde a formulação de uma teoria acerca da constituição do delito até a justificação da imposição de sanções penais, encontram-se permeados por determinações oriundas do corpo social. O diagnóstico dessas condições que delimitam seu campo de possibilidade permitem compreender como opera a relação entre o sistema penal e seu próprio discurso, conferindo um instrumental de análise de suas funções reais em contraposição às simplesmente declaradas. Alcançar esse objetivo significa destituir o discurso penal como fonte de legitimação do sistema que sustenta, indicando a perspectiva apenas aparente de desempenho de tal função. O discurso penal se constrói a partir das condições que lhe são oferecidas, desempenhando o papel de coadunar-se e de permitir a realização das exigências impostas ao sistema penal. Para realizar o diagnóstico dessas condições de possibilidade discursivas e identificar o mecanismo de sua operação, procedeu-se à aplicação de uma análise de discurso atenta aos seus aspectos intra-discursivos e extra-discursivos. O uso de elementos presentes na sociologia do conflito e no interacionismo simbólico forneceram, concomitantemente, possibilidades de clarificação das interrelações entre discurso e sistema penal em âmbito micro-sociológico e macro-sociológico.
METODOLOGIA:
A análise das condições de possibilidade de um determinado saber revelam a existência de certas imposições epistêmicas para que dado discurso possa alcançar validade no corpo social. Compreende-se, assim, que existiriam condições de possibilidade históricas para que um discurso possa emergir. Essas condições se dariam, por um lado, pelo entrelaçamento de diversos discursos, partindo-se de análises intra-discursivas. Por outro, as relações entre saber e poder acarretariam mútuas determinações, condicionando o surgimento de um discurso válido à sua adequação às relações de poder, que impõem sua constante redefinição em um nível extra-discursivo.
Através do processo de construção social da realidade, pode-se compreender que o pano de fundo é formado pela atualização de estereótipos em todo momento de interação intersubjetiva, alterando, a cada instante, a constituição do imaginário de cada indivíduo e da sociedade. Esse interacionismo simbólico, ao melhor compreender a atribuição de rótulos no corpo social, fornece um aspecto fundamental para compreensão da construção social da criminalidade.
A sociologia do conflito busca compreender como a dinâmica dos grupos de uma sociedade permite configurar sua estrutura. O conflito entre valores e pautas de comportamentos desses diversos grupos acarreta a conformação das práticas sociais e punitivas aos resultados desse choque, conforme o modo de sua solução. Condiciona-se, assim, o sistema penal e seu discurso à dinâmica desses conflitos.
RESULTADOS:
Reconhece-se que o discurso penal é elaborado a partir de fins estatuídos e modos de intervenção calculados de acordo com esses objetivos. Entretanto, em sua instrumentalização, há toda uma série de debates e conflitos, em virtude dos interesses dos vários grupos e segmentos sociais envolvidos em sua efetiva implementação. Cada grupo tenta estabelecer, nessa dinâmica de deliberação, a imposição de seus valores e pautas de conduta, como meio de ampliar seu instrumental de ação, o qual é considerado, por seus integrantes, correto e adequado. Obviamente, face à impossibilidade de se efetivar os interesses de todos os grupos e segmentos sociais, certos valores e pautas de conduta terão predominância sobre as demais, excluindo-se, necessariamente, aquelas que lhes forem contraditórias. Por outro lado, o pano de fundo social, construído no imaginário da sociedade por mecanismos de interacionismo simbólico, sofre também grande alteração nesse processo, ao mesmo tempo em que lhe oferece profunda resistência. A implementação do referido discurso requer, efetivamente, que o conteúdo de dito discurso passe a ingressar no pano de fundo através da sua incorporação no plano individual, em que cada momento de interação social novamente o atualiza. Resulta desse processo um discurso polimorfo que tenta conferir legitimidade às práticas sociais de punição, sem que no entanto esse próprio discurso possa se constituir como capaz de estatuir coerentemente seu modo de atuação na realidade social.
CONCLUSÕES:
Percebe-se, portanto, a incidência de um complexo mecanismo na estruturação de um discurso penal válido. A determinação das condições de possibilidade para a vigência de possíveis discursos aponta para sua flagrante incapacidade normativa, enquanto meio de justificação para a reação e controle social dirigidos a certos fins declarados. Adstrito a parâmetros relacionados às condições de possibilidade intra-discursivas e extra-discursivas, conflitos grupais de valores e interesses, bem como a processos de atualização do seu conteúdo nas interações sociais, o discurso penal amolda-se ao seu entorno de forma, na grande maioria das vezes, não teleológica e contraditória. O conteúdo do seu discurso, que aparentemente legitima o funcionamento do sistema, se engendra na estrutura social, encobrindo sua real funcionalidade. O sistema continua, assim, atendendo aos patamares estabelecidos faticamente pelo corpo social como demandas a serem concretamente desempenhadas, porém se reduzem as chances da re-conceituação normativa de suas funções. O discurso penal aponta um modo de atuação que não é capaz de controlar a intervenção punitiva do sistema penal, já que lhe faltam elementos racionais para controlar os efeitos causais do sistema na sociedade. Esse discurso não consegue se estabelecer como discurso que venha efetivamente legitimar a prática punitiva estatal, pois seu caráter normativo perde-se por sua inconsistência e desacordo com aquilo que realmente subjaz à sua implementação.
Palavras-chave:  Interacionismo simbólico; Conflito social; Discurso penal.

Anais da 56ª Reunião Anual da SBPC - Cuiabá, MT - Julho/2004