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H. Artes, Letras e Lingüística - 3. Literatura - 5. Teoria Literária
A CALEIDOSCÓPICA LÍRICA MODERNA
CELINA CASSAL JOSETTI 1   (autor)   cassaljosetti@unb.br
1. DEPARTAMENTO DE TEORIA LITERÁRIA, UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA, UnB
INTRODUÇÃO:
A fruição da lírica moderna passa analogamente por uma experiência bastante prosaica que - se não a vivenciamos - já tivemos a oportunidade de observar. Imaginemos uma criança que recebe de presente um caleidoscópio. A princípio, o que parece não trazer nenhum atrativo além do barulho dos pedacinhos de vidro soltos dentro de um cilindro converte-se em grata experiência quando ela olha pelo orifício e percebe que, a cada chacoalhar, uma nova realidade de cores e formas se reconfigura e com os mesmos elementos: os pedacinhos de vidro colorido e o jogo de espelhos angulares dispostos ao longo do cilindro. A lírica moderna precisa de um novo leitor. Ela o convida a interagir. Não basta depreender suas formas e significados. Estamos diante de um novo desafio para o olhar. Dessa forma, ela possui peculiaridades que não poderiam ser enumeradas, a rigor, em um quadro de características. Engajamento em Lorca e hermetismo em Celan, ambos podem ser tomados como traços incompatíveis da lírica moderna, se nos propomos a estudá-los a partir de categorias elementares; todavia, se os examinamos sob a perspectiva da criança olhando pelo caleidoscópio, talvez se desfaça a aparente contradição.
METODOLOGIA:
Movido pela busca de potencialidades que a palavra jamais ousara ter, já que percebe a língua na plenitude de suas possibilidades, o poeta moderno não tem nenhuma cerimônia com a língua, exercita a crítica com a mesma desenvoltura e talento com que escreve poemas, assim concordamos com Paz quando diz: "a modernidade inventou a crítica". Os poetas modernos são os usuários mais astutos que uma língua pode ter, uma vez que não reduzem a compreensão da língua a um mero instrumento de comunicação. Para eles a língua não é código. Isso explicaria a conciliação harmoniosa do exercício crítico com o fazer poético. Poe, Baudelaire, Mallarmé, Valéry, T.S. Eliot e Pound são excelentes críticos e poetas. Um olhar muito apegado aos princípios aristotélicos quando dirigido a um poeta moderno pode se privar da fruição dessa nova modalidade de arte poética. Assim, promove-se uma fecunda ruptura com a tradição. O itinerário do fazer poético é outro. Não há mais tempo para essa eloqüência, quem iria ouvi-la? A escolha de Mallarmé justifica-se pela excelência e originalidade de sua obra. Houve poucos poetas que se sentiram tão à vontade para falar de poesia, fazer poesia e conciliar esse trabalho com outros exercícios de escrita não artística.
RESULTADOS:
O estudioso mais preparado para penetrar no universo da peça mais notável de Mallarmé seria um músico. Pelo menos é que depreendemos da leitura do prefácio que ele mesmo elaborou para Um lance de dados em sua primeira edição (2002): "Ajunte-se que deste emprego a nu do pensamento com retrações, prolongamentos, fugas, ou seu desenho mesmo, resulta, para quem queira ler em voz alta, uma partitura." Leigos em música, resta ao nosso modesto exercício de leitura dispor das habituais ferramentas da crítica literária, assim, sublinharemos dois aspectos que estruturam a obra. Inicialmente o poema foi publicado em 1897 na Revista Cosmópolis com uma disposição gráfica que não satisfazia o autor, devido às limitações de edição da revista: o texto ocupava a página simples e não a dupla página que viria a aparecer em edições futuras. Num contexto de grande progresso industrial e tecnológico, seguido da inevitável massificação da arte, emerge Stéphane Mallarmé, autor que promove uma dessacralização da palavra poética. O ideal clássico de arte postulava que o real deveria ser representado segundo normas rígidas pré-estabelecidas pelas convenções poéticas. Com o Romantismo alemão, houve uma mudança de abordagem, uma vez que para Schlegel, Novalis e Schelling a obra de arte deveria constituir um universo paralelo à natureza. Mais adiante, Um lance de dados vem propor ao leitor um novo pacto: despoje a palavra de referências previsíveis, destrua a trivial lógica e experimente o eloqüente silêncio de uma página em branco.
CONCLUSÕES:
Mallarmé prepara-nos para uma mudança de percepção da literatura. Com a tautológica: "un coup de dés jamais n´abolira le hasard", o olhar do leitor é arremessado do fundo do oceano ao firmamento. As imagens não estão distribuídas em comportados versos. A dupla página e a fenda da encadernação desafiam o olhar. Tudo passa a ser instantâneo. Seria um manifesto profético da literatura do século XX, uma cosmogonia ou apenas uma peça publicitária? Ora, se já propusemos que a relação estabelecida entre língua e arte poética não se faz mais balizada na concepção de que a língua é mero código - signos a serem decifrados - as palavras para esse poeta não poderiam deixar de ser símbolos arbitrários e converter-se em ícones ou índices? A força enunciativa do poema também provém da subversão da relação arbitrária do signo lingüístico. Outro aspecto a se observar seriam as duas trajetórias do pensamento lógico: a indução e a dedução . Não acreditamos que Mallarmé tenha se servido de nenhuma dessas duas possibilidades de raciocínio. O que nos parece mais plausível é a retrodução na concepção de Peirce, isto é, a indução criativa que arremessa-nos à descoberta e ao conhecimento da "obra pura". Partindo, pois, dessas duas chaves: a desconstrução do signo arbitrário somada ao desprezo pelo raciocínio formal, a compreensão/fruição do poema torna-se mais acessível, uma vez que esses dois expedientes engendram sua construção.
Instituição de fomento: UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
Palavras-chave:  Lírica Moderna; Mallarmé; Crítica Literária.

Anais da 56ª Reunião Anual da SBPC - Cuiabá, MT - Julho/2004