O QUE FAZER COM OS CONTEÚDOS?

O LIVRO DO SÉCULO XXI NA AVALIAÇÃO ACADÊMICA.[1]

 

 

José Castilho Marques Neto[2]

Universidade Estadual Paulista (UNESP) e Fundação Editora da UNESP

 

A “aceleração contemporânea”, conceito elaborado pelo Professor Milton Santos ao descrever o ritmo acelerado e contínuo das grandes mudanças do mundo contemporâneo, nos impõem constantes desafios, proporcionais às grandes e significativas transformações pelas quais passa a humanidade.

A consolidação de um sistema-mundo, a incorporação de sociedades e territórios jamais vista na história do homem só se tornaram possíveis, porém, pelos avanços tecnológicos que unificaram sistemas técnicos até aqui dispersos ou criaram novos sistemas inovadores. Em grande escala e com outra dimensão e abrangência, a revolução provocada pelo aparecimento do livro da era Gutenberg, que transformou a circulação do conhecimento e a apropriação de culturas durante os últimos 500 anos, hoje parece tímida frente aos desafios da “textualidade eletrônica”, na terminologia de Roger Chartier ao referir-se à revolução da informática aplicada aos textos e aos livros.

A combinação entre os avanços na área da informática com os conhecimentos, infraestruturas e equipamentos produzidos no campo das telecomunicações (com destaque para a utilização de satélites) ofereceram ao mundo atual uma multiplicidade de novos meios de difusão de informações, idéias, conhecimentos e valores, notadamente nas formas de linguagem midiáticas que, quase em tempo real, mostram imagens e informações escritas e faladas com tremendo alcance espacial e social.

Mas, certamente, a grande característica de nosso tempo é a rapidez com que se difunde o novo (ou apenas as novidades). Aliada a uma multiplicação sem precedentes dos tipos de linguagens que estão disponíveis para a sociedade contemporânea, a rapidez do novo amplia de maneira assustadora a convivência hiperlativa com um fenômeno que já se anunciava temerário na era de Gutenberg – a domesticação da abundância, diagnosticada pelo imenso número de obras, autores e livros que passaram a ser publicados em escala industrial.

 

A produção editorial brasileira já incorporou tecnologia suficiente para fazer frente a esta “nova abundância” e, embora particularmente focada nos interesses empresarias e de mercado, não há como fugir da realidade apontada mundialmente pelos historiadores e analistas do livro e da leitura: o mundo de hoje detém de maneira irreversível novas formas de difusão do conhecimento, da informação e do entretenimento também quando tratamos do suporte tradicional até aqui chamado livro.

No âmbito acadêmico, em seu sentido restrito, e no âmbito intelectual, no sentido mais amplo desse termo, a multiplicação de revistas científicas eletrônicas e, no Brasil, os investimentos da CAPES para a montagem, ampliação e manutenção de seu Portal de Periódicos foram, sem dúvida, os fatos que mais diretamente expressaram esse conjunto de mudanças.

A polêmica instaurada pelos áulicos do catastrofismo nos anos 90 do século passado, e que ainda possui adeptos, previa o desaparecimento do livro impresso em papel e a deterioração das habilidades da leitura. O futuro do livro tornou-se incerto e, junto a este prognóstico sombrio aventou-se, mais recentemente, a futura extinção da profissão de editor, à medida que o avanço tecnológico transformasse cada autor em editor. A esse novo mundo sem editores somava-se a não necessidade futura do restante da cadeia produtiva e propagadora do livro: livraria, distribuidora, biblioteca. De seu computador pessoal, o autor emancipar-se-ia para o universo dos seus leitores, igualmente interligados no mundo virtual.

Pelo menos no mundo editorial e dos estudiosos do tema, já se ultrapassou a fase do catastrofismo simplório e do ufanismo do marketing das grandes corporações de informática. No vértice de todos os debates sobre o futuro do livro e das novas tecnologias, desponta, emblemática e permanente, a idéia definidora de conteúdo, entendido como a qualidade ou como os conceitos e as informações propriamente ditos que são oferecidos aos leitores contemporâneos e futuros, independentemente se são livros científicos ou de simples lazer e entretenimento.

Ao considerar o impacto tecnológico dos tempos atuais e, ao mesmo tempo, redimensionar o debate, se aponta, principalmente no livro acadêmico, fruto da reflexão científica, para aquilo que sempre foi e sempre será o determinante do conhecimento a ser transmitido: a qualidade do conteúdo.  Se quisermos utilizar parâmetros atuais da CAPES, entenderemos que a qualidade do texto é determinada pela originalidade, pela contribuição teórica única, pela inovação tecnológica e pela instauração de uma metodologia original.

Resumidamente, não se trata mais de especularmos se haverá o desaparecimento do livro impresso ou a extinção do editor. Num mundo do conhecimento e da informação, permeado pela convivência nem sempre amigável entre o texto impresso e o texto virtual, o problema que se coloca é como avaliar e gerenciar conteúdos.

Como lidar, na prática cotidiana, com essa avaliação e gerenciamento dos livros produzidos pelos pesquisadores universitários? Como responder, igualmente, à crescente demanda por publicações dos nossos docentes, pressionados pela necessidade de publicar seus trabalhos? Do ponto de vista de minha Universidade, a UNESP, concebemos uma Editora Universitária que se pauta essencialmente pela avaliação e gerenciamento de conteúdos produzidos ou não pela própria UNESP. A relação que ela estabelece com os autores, professores e pesquisadores da comunidade unespiana é de permanente avaliação da qualidade intelectual dos trabalhos apresentados à edição. A Editora não tem a missão de publicar a qualquer custo o que se produz na pesquisa da UNESP mas, seguramente, tem a função de produzir o que a Universidade tem de melhor, na ótica de avaliação de seus consultores externos e também de um Conselho Editorial múltiplo e de alta competência técnica. Agindo dessa forma, com critérios rigorosamente acadêmicos de avaliação pautada na qualidade, que são perfeitamente auditáveis por qualquer agência de fomento, entendemos que estamos cumprindo requisitos fundamentais para os padrões da CAPES, por exemplo. Porém, como qualquer outra editora acadêmica que leva seu ofício com seriedade, não estabelecemos esses critérios com o objetivo de cumprir requisitos das agências financiadoras, mas de criar um catálogo que seja rigorosamente universitário, pluralista, que contribua para o progresso da ciência e da compreensão dos fenômenos (sociais, políticos, econômicos, naturais, etc) do mundo contemporâneo. Com a ênfase na qualidade para publicar, e assim “domesticar a abundância”, cumprimos cotidianamente a função de editar, não apenas imprimir trabalhos de pesquisa que chegam abundantemente à Editora UNESP. Uma editora com critérios de qualidade, com abertura para tornar esses critérios auditáveis, são, em última instância, certificadoras de qualidade de trabalhos academicamente corretos.

 

Há, no entanto, um porém nessas reflexões e na prática que aplicamos na Editora UNESP. Num mundo pautado pela transformação da era da informação e das vias expressas virtuais, como afirmei anteriormente, ainda convivemos na edição tradicional com a imposição dos custos de preparação de originais e industriais, na necessidade da existência de um número mínimo de compradores e da necessidade de uma determinada capacidade operacional envolvendo todas as fases de uma edição clássica em suporte de papel. Pressionada por essa realidade, a Editora UNESP deixa de editar trabalhos de ótimo nível acadêmico com público leitor presumível menor que 1.000 compradores.  Entre duas propostas de publicação do mesmo nível de qualidade acadêmica, optamos sempre em publicar aquela que entendemos terá maior número de leitores potenciais. Mesmo sendo uma editora acadêmica, não conseguimos custear um texto em suporte tradicional apenas pelo critério de mérito, e então nos submetemos às regras de mercado para decidir sobre um número “x” de publicações anuais que nos garantem um retorno financeiro suficiente para continuarmos publicando.  Esta prática que não é apenas da Editora UNESP, pois é notória e exercida cotidianamente nas editoras, não seria um problema se para aquele texto rejeitado, não por suas qualidades acadêmicas, mas por sua pequena inserção junto a um número mínimo de leitores, fosse destinado um lugar de reconhecimento e de divulgação adequados. Novamente, recorro à prática diária para afirmar que a maior parte desses textos, na melhor das hipóteses, fica num obscuro banco de dados de sua unidade universitária, sem qualquer certificação que o destaque dos outros trabalhos menos qualificados.

 

Considerando essas reflexões, as próximas perguntas que se impõem, ao avaliarmos o futuro do livro na avaliação dos programas de pós-graduação são as seguintes: o critério de qualidade pressupõe também uma demanda comercial? A universidade deve obrigatoriamente editar em método tradicional todos os trabalhos considerados de qualidade, independente do custo e do número de leitores que se interessam por aquela pesquisa? Penso que não, e que se permanecermos como estamos nestes quesitos, poderemos entrar definitivamente em um mundo equivocado na edição e na avaliação dos livros, que esquece, inclusive, das conquistas tecnológicas que abordamos no início deste texto.

Partindo do princípio de que é a qualidade que determina a publicação ou não de um trabalho científico, e que temos soluções avançadas no mundo contemporâneo para contemplar com adequação às várias demandas dos autores, entendo que as Editoras que se dispuserem a ter seus critérios auditados por instituições de avaliação poderiam ser certificadoras de qualidade, independentemente do suporte no qual o texto é publicado.

Coerentemente, o que também pleiteio é a ampliação do conceito do que é livro. Considero aqui os novos suportes, resumidamente o que chamaria de livro eletrônico, como passiveis de avaliação no futuro para os programas de pós-graduação. É certo que seriam livros editados, com um critério rigoroso de qualidade, nos moldes que expus no parágrafo anterior. Autor e editora que primam pela qualidade seriam preservados como ensinam os 500 anos da boa história editorial do planeta, mas o resultado seria oferecido em mídias suportáveis economicamente.

No que se refere ao aparecimento desse tipo de publicação como uma nova frente e forma de difusão de conhecimento, os avanços, no caso brasileiro, são inexpressivos.

A Universidade brasileira, onde se concentra a maior parte da produção científica do país, bem como as agências que se ocupam do fomento e da avaliação da pesquisa, deveriam realizar um debate amplo sobre esse conjunto de novas possibilidades e se colocarem abertas à ampliação dos sistemas, meios, formas e linguagens de difusão do conhecimento.

Essa abertura justifica-se, além das já apresentadas por, pelo menos, mais três fatores:

§         Num mundo globalizado, a adoção de formas de difusão e comunicação variadas e abrangentes insere diferentes atores sociais na arena mais ampla dos acontecimentos e do debate. Se os novos sistemas técnico-científico-informacionais foram pensados e estruturados pelos atores hegemônicos, não é demais lembrar que podem e estão sendo apropriados por diferentes outros atores (movimentos sociais, organizações não-governamentais, governos de países que ocupam posição dependente neste sistema-mundo, etc).

§         As novas tecnologias são mais ágeis e, depois dos investimentos pesados iniciais para a aquisição de infraestruturas e equipamentos, oferecem custos mais baixos para a difusão de informações e conhecimentos, tornando possível, ao mesmo tempo, uma distribuição mais ampla espacialmente e mais rápida daquilo que se pretende difundir.

§         Num país capitalista, industrializado, mas de economia dependente, em que os investimentos em ciência e tecnologia, têm sido menores do que os realizados por outros países que ocupam a mesma posição, é preciso se adotar medidas para se compensar as diferenças e se recuperar as perdas ocorridas nas últimas décadas. A adoção de novas tecnologias, se pensadas de forma conseqüente, podem favorecer a ampliação das oportunidades de acesso ao conhecimento àqueles segmentos de menor poder aquisitivo e com grau bastante precário de inclusão social.

 

A mudança da posição da Universidade e dos pesquisadores passa, ao nosso ver, por mudanças nos próprios sistemas de avaliação, com destaque para o desenvolvido pela CAPES para as Pós-graduações brasileiras, que se constitui em proposta avançada, complexa e em constante redefinição.

Uma tomada de posição diante desses fatos novos e desafios deveria implicar numa valorização de todas as formas de difusão de idéias e conhecimento, ainda que a qualidade dos conteúdos difundidos deva ser o central em nossas iniciativas.

 

Transparência nos critérios, manejo adequado dos conteúdos, generosidade e compreensão em relação aos novos suportes da escrita, peso essencial na avaliação ditada pelos conteúdos certificados, estes deveriam ser os critérios essenciais para o futuro do livro na avaliação dos programas de pós-graduação em nosso país.

 

Fortaleza, 20 de julho de 2005.



[1] Agradeço a contribuição da Profa. Dra. Maria Encarnação Espósito, da UNESP – Campus de Presidente Prudente/SP.

[2] Professor de Filosofia na FCL – UNESP – Campus de Araraquara. Diretor Presidente da Fundação Editora da UNESP. Presidente da Asociación de Editoriales Universitárias de América Latina y el Caribe (EULAC). Contatos: castilho@editora.unesp.br