REVISÃO DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA SOBRE O ABORTO: UMA QUESTÃO EM ABERTO.

 

Thomaz Rafael Gollop

 

O abortamento em nossa sociedade é frequentemente relacionado  ao crime e ao pecado. Sua penalização  pode ser  interpretada como reflexo, às vezes inconsciente, de não se conceder à mulher o livre exercício de sua sexualidade. Para aqueles que assim pensam  o exercício da sexualidade que implicar em gravidez,  exigirá o nascimento de seu fruto, independentemente  da vontade de sua mãe. O filho seria então uma pena a ser expiada.  Nesta perspectiva possivelmente tenha surgido a legislação relativa ao abortamento, datada de 1940.  Ela não é apenas anacrônica como é ineficaz; é causa de morbi-mortalidade materna. Estima-se que mais de 1.000.000 de abortamentos clandestinos sejam realizados anualmente no Brasil. Dados do Ministério da Saúde mostram que 238 mil internações por abortamento/ano, a um custo médio unitário de R$ 125,00, totalizando R$ 30 milhões – ou seja U$ 10 milhões de dólares -  são dispendidos neste quesito por ano pelo SUS. Este valor é subestimado, pois não estão computados os custos com internações que ultrapassam o período de 24 horas: as que necessitam de cuidados em Unidade de Tratamento Intensivo e as internações prolongadas para tratar infecções, que são freqüentes. Estão excluídos também os recursos adicionais necessários para atender às seqüelas – impossíveis de estimar a partir das atuais bases de dados sobre o tema.

As mortes por abortamento, em sua maioria, são de solteiras ou separadas judicialmente; a Razão de Mortalidade Materna (RMM) por abortamento, para as negras (pardas e pretas), é de 11,28/100 mil nascidos vivos, duas vezes a RMM para as brancas. São dados claros mostrando que as seqüelas são muito maiores para a população de baixa renda/escolaridade. Fica evidente também que o Estado brasileiro gasta, com a legislação vigente, um considerável montante de dinheiro. Não há portanto razões para afirmar-se que uma eventual modificação da legislação punitiva exigirá um investimento grande. Ele já é realizado atualmente.

Há exemplos concretos de que a legislação punitiva aumenta a mortalidade materna. Na Romênia, a partir de 1957 havia uma legislação muito liberal em relação ao abortamento  e a mortalidade materna era estimada em 20 por 100.000 mulheres. Esta legislação foi alterada em 1985 permitindo o abortamento apenas em casos de estupro, por razões sociais em mulheres com mais de 40 anos, para aquelas com mais de 5 filhos e em menores de 18 anos. A mortalidade materna com esta reformulação subiu. Em 1989 a lei foi novamente democratizada deixando o abortamento livre até 12 semanas e no segundo trimestre quando havia risco para a vida da mulher ou  malformações fetais. Com a vigência da nova lei a mortalidade materna caiu 317%.

Por outro lado o risco de vida materna como conseqüência de um aborto legal é de 1 para 100.000 mulheres  nos Estados Unidos. O  risco de vida  por abortamento ilegal e inseguro em países em desenvolvimento varia entre 1 em cada 100 para 1 em cada 1.000 mulheres que abortam, o que novamente mostra prejuízo maior para as mulheres  pobres. Dados desta envergadura devem influenciar as discussões sobre a revisão da legislação pertinente em nosso país.

Há entretanto  nós a desatar. Os médicos são ensinados a valorizar a vida em qualquer eventualidade. Por muitas gerações a questão da gravidez indesejada jamais fez parte da grade curricular das faculdades de medicina. Dar o direito de opção para as mulheres, ter ou não filhos, não é aceito por parte considerável dos médicos. Para o leitor será válido neste ponto indicar claramente nossa posição. Ter filhos é, sob nossa perspectiva, uma questão de afeto e responsabilidade de homens e mulheres. Te-los não deve  ser uma imposição. Nem o Estado nem  a legislação  impõe filhos a quem quer que seja. Todos sabem que o Brasil tem milhares de clínicas clandestinas de abortamento e que este é um negócio rentável. Mas o conhecimento desta realidade não modifica, necessariamente, posições conservadoras.

Pensamos ser válido iniciar uma rápida revisão da história recente de três dos múltiplos aspectos relativos ao tema e que ganharam espaço na mídia em 2004-2005: a questão do boletim de ocorrência em casos de violência sexual, a tramitação da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) no Supremo Tribunal Federal (STF) relativa a anencefalia e a distribuição na rede pública da pílula do dia seguinte.

O Código Penal de 1940 jamais estabeleceu a necessidade de obter-se um Boletim de Ocorrência (BO) quando a mulher, vítima de violência, viesse a engravidar e solicitasse uma interrupção de gravidez. A Norma Técnica do Ministério da Saúde de prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes de 2005 dispensa desta formalidade os serviços de abortamento legal.

Muitos juristas apontam que o BO nada mais é do que uma informação à autoridade policial de um fato que poderá ou não ser verídico. Por outro lado a necessidade de ir à uma delegacia de polícia pode ser um constrangimento a mais para a mulher vítima de violência. Editada a norma, houve grande reação por parte dos médicos. Compreensível. É o médico do serviço público que está colocando seu pescoço a prêmio. O Conselho Regional de Medicina em São Paulo, na figura de seu presidente, Dr. Isaac Jorge, reagiu publica e imediatamente orientando os médicos do Estado de São Paulo a não atenderem estes casos sem BO. Já o Conselho Federal de Medicina publica em seu Jornal de março/abril de 2005 orientação para todos os médicos brasileiros no sentido de exigirem o  BO como instrumento preliminar para a execução do abortamento legal. Um dos argumentos para a exigência seria a identificação dos agressores e sua devida punição. Diz a orientação: “ Tudo isto acoplado em um mesmo projeto e ambiente, deslocando-se a polícia, já humanizada e educada para o trato com estas situações, para dentro do ambiente assistencial-hospitalar, onde, em conjunto com outros profissionais, possa o registro da violência se dar com total proteção física e emocional à mulher”. É absolutamente válido que os médicos zelem pela sua segurança penal e emocional. Na época da edição da norma técnica o presidente do STF, Ministro Nelson Jobim, declarou claramente que o BO era necessário para salvaguardar os médicos.

Qual a dedução lógica? Podemos questionar se no Brasil de hoje há condições de dar, em hospitais do SUS, uma atenção com polícia humanizada. Poderemos perguntar também se a exigência do BO levará, na nossa realidade, à identificação do agressor, até porque este é muitas vezes conhecido e parente próximo da vítima.

Mas acima de tudo, precisamos admitir que, em uma questão que envolve o direito ao abortamento legal, a edição de uma norma de atendimento que dispensa uma documentação policial, gerou muita insegurança. Demonstrou-se que há conflitos de orientação entre autoridades e colocou-se em posição de vulnerabilidade a classe médica.

Chegamos então a uma primeira conclusão: Há a necessidade de se discutir esses temas intensamente com a sociedade civil e com as autoridades legislativas e representativas de todas as classes profissionais envolvidas. Não cumprida esta tarefa corremos o risco de editarmos novos projetos de lei, normas e outros instrumentos cuja validade prática venha a ser anulada por conflitos não resolvidos previamente.

Outro exemplo prático advém da questão da discussão da ADPF no STF. Em 1º de junho de 2004 o Ministro Marco Aurélio Mello concedeu liminar autorizando médicos e hospitais do Brasil a interromperem gestações com fetos anencéfalos sem a necessidade de concessão de alvará judicial. Esta liminar foi cassada em 20 de outubro de 2004. Em 27 de abril de 2005 o STF considerou que o mérito da questão da ADPF era cabível de discussão em seu plenário. Agora aguardamos a primeira audiência pública da história do STF cuja função será discutir a possibilidade ou não de interromper-se a gravidez de fetos com anencefalia sem necessidade de alvará judicial. Nela serão ouvidas autoridades médicas, eclesiásticas e da sociedade civil que opinarão sobre esta questão. Depois será emitida uma decisão. Mais uma vez vemos como a tramitação destas questões é morosa e difícil no Brasil. Os limites entre o legislativo, o executivo e a igreja, embora estabelecidos na Constituição Federal, muitas vezes não são devidamente demarcados. O conceito de que questões de fé são da ética privada e as questões jurídicas são públicas também não é claramente estabelecido.

 É interessante pontuarmos um pouco da história prévia à discussão do STF. Alvarás judiciais para interrupção de gestações em anomalias fetais incompatíveis com a vida, incluindo várias outras além da anencefalia, começaram a ser concedidos no Brasil a partir de 1989. Habitualmente levam de duas a três semanas para serem obtidos. Em Brasília são obtidos em 24 horas através do trabalho de um promotor local, Dr. Diaulas Ribeiro. É preciso entender o alcance prático de uma instituição legal como o alvará. Com sua posse a mulher poderá interromper uma gravidez de um feto portador de anomalia grave, e poderá faze-lo em qualquer hospital da rede pública ou privada. Terá atendimento médico e psicológico adequados dentro dos melhores padrões de ética. O direito legal obviamente não retira a decisão livre da mulher. Cada uma decide de acordo com suas convicções pessoais e religiosas.

Até hoje mais de 3.000 alvarás foram concedidos no Brasil em diferentes patologias.

Mas perguntamos: Por qual razão discutir especificamente anencefalia? Uma das razões poderá ser porque esta é  uma anomalia fetal já muito debatida na mídia e mais conhecida da população. Uma  decisão favorável do STF, permitindo a interrupção da gravidez nestes casos, representará um avanço sem dúvida. Entretanto o tópico das malformações fetais graves, amplamente contemplado entre os permissivos legais ao abortamento em países desenvolvidos, estará apenas parcialmente solucionado em nosso meio.

Conclusão: Muitas decisões jurídicas anteriores, ampla discussão pelos meios de comunicação  e um posicionamento favorável de mais de 80% da população brasileira possivelmente nos permitam um modesto avanço em relação a uma legislação mais adequada aos avanços da ciência e do diagnóstico em medicina fetal.

Há uma ponte histórica entre as duas condições acima colocadas: tanto na violência sexual quanto na anormalidade fetal grave há, no Brasil,  dispositivos legais que permitem a interrupção da gravidez há muitos anos. Ainda assim esta é uma área sensível e cujo trato gera conflitos cujas soluções muitas vezes envolvem motivações nem sempre voltadas para a defesa da população, especialmente a mais carente. Precisamos deslocar a discussão  do abortamento  para o foco  da saúde pública. Uma frase recente de Hilary Clinton encerra uma grande verdade: O abortamento deve ser legal, seguro e raro. Sem dúvida nenhuma o acesso ao planejamento familiar diminui o risco de gestações indesejadas. Não encerra a questão. Mesmo em países com alta escolaridade e pleno acesso aos métodos anticoncepcionais a gravidez indesejada ocorre.

Vamos ao terceiro ponto de discussão recente: Anticoncepção de emergência. Utilizada para evitar a gravidez em casos de relações  sexuais não planejadas ou quando os métodos utilizados falharam (rompimento do preservativo, por exemplo) ela é mais uma arma no arsenal do planejamento familiar. Sua ação consiste em liberar hormônios que, caso não tenha havido fecundação, dificultam o encontro do espermatozóide com o óvulo. Se ele já tiver ocorrido, os hormônios provocarão a descamação do endométrio, impossibilitando que o zigoto ali se aloje. Legalmente, o abortamento só se configura quando há a interrupção da gravidez, que só tem início depois que o ovocito fecundado é implantado no útero. Desde março de 2005 o Ministério da Saúde vem distribuindo o medicamento na rede oficial como mais uma arma no arsenal do planejamento familiar. Entretanto várias cidades do país vem decidindo, por lei municipal, proibir a distribuição da pílula do dia seguinte com a argumentação de que ela seria abortiva, fato que em termos técnicos ela não é. Pelo contrário, a pílula do dia seguinte evita uma gravidez indesejada e sua possível interrupção insegura. Mais uma vez deve-se respeitar o direito de todas as mulheres que não queiram tomar essa pílula por razões de consciência. De modo análogo, é fundamental que as mulheres que desejam usá-la tenham acesso à mesma, sem impedimentos de ordem moral. Mescla-se com facilidade, mais uma vez neste caso,  a fronteira entre fé, direito e liberdade individual.

Conclusão: Normas podem ser muito válidas e voltar-se para os mais legítimos interesses da população. Sua implementação e eficácia poderá ser comprometida por restrições morais que muitas vezes estão longe da compreensão da população. Torna-se claro que legislar é importante. É fundamental também informar e desconstruir preconceitos.

Finalmente é oportuno dizer que todos devem ter suas crenças respeitadas, mas, para que isso seja possível, é necessário renunciar a impor opções religiosas e filosóficas à coletividade. Lembramos Burke que no século XVIII dizia: “ Más leis são a pior forma de tirania”. Propor uma nova legislação não punitiva em relação ao abortamento é absolutamente necessário. Não é suficiente. Parece-nos que o assunto necessita de um amplo esclarecimento e de  muita discussão com as mais diversas correntes da opinião pública sem o que corremos o risco de termos mais um projeto de lei cuja repercussão poderá não alcançar a desejada diminuição da morbi-mortalidade das mulheres brasileiras, especialmente as mais pobres,  em função do abortamento inseguro.