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H. Artes, Letras e Lingüística - 3. Literatura - 1. Literatura Brasileira
CONSIDERAÇÕES SOBRE A ALTERIDADE NUM CONTO DE CLARICE LISPECTOR
Giselle Madureira Bueno 1, 2 (gimim@uol.com.br) e Edna Cristina do Prado 3, 4
(1. Mestranda do Depto. de Teoria Literária e Literatura Comparada, FFLCH/USP; 2. Professora de Teoria Literária, Faculdade Interação Americana/FIA; 3. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar, UNESP/FCLAR; 4. Professora de Prática de Ensino, Faculdade Interação Americana/FIA)
INTRODUÇÃO:
O objetivo deste trabalho é interpretar a questão do outro no conto "A menor mulher do mundo" de Clarice Lispector1. Em sentido lato, podemos entender o outro como aquilo que é percebido pelo eu como diferente. Na Filosofia, o conceito "alteridade" é polissêmico e possui sua historicidade própria. Assim, Hegel, Fitche, Freud, Husserl, Sartre (para citar alguns dos estudiosos modernos que abordaram o tema) têm compreensões diferentes do que seja o outro. Para nosso estudo, aproveitamos principalmente a perspectiva freudiana, dada a particular fertilidade das categorias psicanalíticas para a reflexão do conto em questão.
Em Freud, a idéia de alteridade liga-se ao "estranho", cuja definição tem origem em Schelling: "Denomina-se 'estranho' tudo aquilo que, devendo permanecer oculto, acabou se manifestando" 2. O tema une-se também ao "segundo eu" ou "duplo". Este é uma experiência de subjetividade, isto é, a experiência de reflexão do eu que levanta a questão da identidade. É um tema freqüentemente associado aos fenômenos de desdobramento de personalidade paranóica ou esquizofrênica. Enfim, são algumas das configurações do duplo: a alma imortal, o "alter ego", os sósias, a imagem especular, a sombra, etc.
A relevância da pesquisa assenta-se na tentativa de apontar a questão da alteridade como chave para a compreensão do conto, contribuir com uma leitura que se confronte com um aspecto pouco iluminado do texto e motivar reflexões sobre o vínculo entre literatura e psicanálise.
METODOLOGIA:
O procedimento metodológico levado a cabo para a execução deste trabalho tem como fundamento a idéia de que a diversidade de orientações é inerente à dinâmica da atividade de pesquisa. Assim, a interpretação de texto realizada repousa num instrumental crítico interdisciplinar, ou seja, as análises e conclusões abrigam-se sob um universo teórico coerente e compatível com o tema, mas relativamente diverso e autônomo, uma vez que são aceitas, sempre que julgadas adequadas ao raciocínio desenvolvido e à organicidade do trabalho, colaborações e subsídios de mais de uma corrente de estudos literários, bem como de diferentes áreas das Ciências Humanas, como História e Filosofia. Não obstante, a leitura interpretativa tem como eixo, principalmente, a interface entre Psicanálise e Estilística e os pressupostos da Crítica Imanente, conforme desenvolvida e praticada por alguns estudiosos da Escola de Frankfurt, como Adorno e Walter Benjamin.
RESULTADOS:
A história narra o encontro entre um pesquisador branco, europeu e "civilizado" e uma anã, que pode ser considerada seu duplo invertido e outro radical: negra, africana e "primitiva", Pequena Flor é uma figura limítrofe, paradoxal e incapturável, pertencente à ordem da matéria-primal, do caos, do estranho freudiano, do mal, da pulsão3. Mas, além de Petre, o pesquisador, defrontam-se com a pigméia várias personagens femininas, que olham, de longe, da cidade, sua fotografia que aparece em um jornal. O aspecto social, tão pouco estudado em Clarice, perpassa todas essas cenas. O conto é a dramatização de uma tentativa de humanização (em sentido clariciano) e de reconhecimento da alteridade. Porém, ao excluírem de si o mal, a desordem, a animalidade, as personagens excluem da africana real sua humanidade, de modo que ela será para sempre marcada pela diferença intransponível de uma alteridade absoluta, que impede a interação social. Outro substrato comum a todas essas cenas citadinas é um fundo de aflição e estranhamento que vai sendo ampliado e desenvolvido, fazendo-nos vislumbrar, invertida, na forma que estrutura o conto, a imagem inicial da caixa dentro da caixa. Contudo, essa forma que se anuncia como elemento estruturador do conto não é cabalmente desenvolvida, como se também não resistisse à natureza desordenadora de Pequena Flor, que invade a narrativa, os personagens, o ponto de vista e o leitor.
CONCLUSÕES:
Os personagens ditos civilizados não reconhecem a alteridade de Pequena Flor. Em correspondência com isso, está o fato de que não reconhecem a própria alteridade. Esta é motivo de reações extremas: fascínio e terror. Se, em algum momento, vivenciam-na, isso se dá de maneira inconsciente ou pré-consciente e efêmera, quase sempre como um "assalto" ao outro ou um "assalto" do outro, e não como uma ida consciente e saudavelmente inquisitiva, rumo à dificuldade da diferença. Assim, a morte atravessa o tema da alteridade: aniquila-se o outro interno e externo. Essa observação não vale, contudo, para a anã. Mantendo fidelidade a seus signos ou pré-signos, ela reconhece o outro e confia-se a ele, numa fusão absoluta e primitiva. Mas tal diferença não deve levar-nos a concluir, influenciados talvez por uma filosofia do "bom selvagem", pela marca de uma idealização da pigméia. Não há nem uma depreciação preconceituosa da primitiva nem uma idealização ingênua. Clarice não cai na armadilha de alguns autores que a antecederam e evita a chave maniqueísta "civilizados"/maus, "primitivos"/bons. Faz seu narrador tratar o excluído, o outro, de forma extremamente ambígua: ele constrói a dignidade da pigméia, reconhece sua alteridade e denuncia a truculência dos "civilizados", mas também a trata impiedosamente e coisifica-a, como provavelmente faria nossa sociedade segregadora. Portanto, neste conto, a obra de arte serve-se da crueldade para não esconder a face ambígua e obscura de todos nós.


1- LISPECTOR, Clarice. Laços de família. 24 ed. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1991. p. 87.
2- Apud HOFFMAN, E. T. A. Contos sinistros. SP, Max Limonad, 1987. Publicado com: CESAROTTO, Oscar. No olho do outro. p. 119.
3- Cf. ROSENBAUM, Yudith. As metamorfoses do mal: uma leitura de Clarice Lispector. SP, EDUSP, 1999.
Palavras-chave:  Alteridade; Clarice Lispector; O Duplo.
Anais da 57ª Reunião Anual da SBPC - Fortaleza, CE - Julho/2005