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F. Ciências Sociais Aplicadas - 4. Direito - 4. Direito Constitucional
A DOUTRINA JURÍDICA COMO MECANISMO DE CONSTRUÇÃO DO DIREITO: UM OLHAR SOBRE O MANUAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL DE JOÃO BARBALHO
Priscila Maddalozzo Pivatto 1 (priscilapivatto@hotmail.com)
(1. Pós-Graduanda em Direito Constitucional e Teoria do Estado - Faculdade de Direito / PUC-Rio)
INTRODUÇÃO:
Para que o estudo do Direito Constitucional possa contribuir para uma compreensão mais ampla e profunda das relações entre sociedade, estado e direito, é importante considerar que mais do que analisar textos normativos inscritos na carta política de um país, cabe também a este ramo de investigação da área jurídica perceber mecanismos práticos que determinem a concretização desses textos. São elementos institucionais, culturais, sociais que transformam a letra da lei em normas vivas que compõem a realidade. Desta forma, é possível afirmar que os estudiosos que se dedicam a escrever obras sobre o Direito Constitucional são, em certa medida, também responsáveis pela construção do direito. Comumente chamados de “doutrinadores”, termo que indica reverência no tratamento, os autores jurídicos contribuem decisivamente na formação de uma cultura jurídica, seja por meio da formação pedagógica de bacharéis, das interpretações de enunciados legais, das propostas de definições e classificações de categorias jurídicas ou de posicionamentos frente a questões controversas. Assim, a partir do entendimento de que as práticas discursivas produzidas pelas doutrinas influenciam a realização do direito e com o objetivo de reconstruir aspectos da tradição jurídica brasileira, o trabalho pretende analisar o manual de Direito Constitucional escrito por João Barbalho Uchoa Cavalcanti, cuja publicação foi efetuada no ano de 19021.
METODOLOGIA:
As estratégias teóricas utilizadas para o estudo da doutrina jurídica como documento histórico se dividem em dois níveis: um mantém o foco na forma, o outro privilegia o conteúdo. Com base na abordagem proposta por Roger Chartier em trabalhos que se dedicam à história do livro e das práticas de leitura2, os “Comentários à Constituição Federal Brasileira”, de João Barbalho, podem ser compreendidos a partir da expressão física do livro. O suporte material é importante na medida em que influencia os usos que o leitor faz do livro, as maneiras pelas quais interage e se apropria do texto, ressignificando-o. A dimensão relativa ao conteúdo da obra jurídica é analisada através da ótica teórica apresentada por Pierre Bourdieu3. Assim, a doutrina é entendida como prática lingüística que atua como forma de poder simbólico, uma vez que exterioriza percepções do mundo social. Considerando ainda que o discurso doutrinário é uma fala autorizada, isto é, que o escritor jurídico é dotado de força social e desfruta de autoridade e competência legítimas para emitir opiniões, é possível afirmar que sua atuação contribui na formação de imaginários coletivos acerca da ordem do mundo, seja reforçando e naturalizando visões dominantes ou sugerindo possibilidades de ruptura com elas.
RESULTADOS:
Com relação aos aspectos formais da obra escrita por Barbalho, pode-se destacar como característica principal o seu caráter enciclopédico. O livro está organizado conforme os artigos da Constituição brasileira de 1891, de modo que, para cada um dos enunciados normativos, há comentários correspondentes elaborados pelo autor. Desta maneira, os artigos são detalhados separadamente um a um, tendo sido utilizado, inclusive, o recurso de destacar palavras e expressões específicas. Esse formato facilita uma leitura fragmentada, o que significa dizer que privilegia pesquisas descontínuas, já que é possível ao leitor direcionar o seu olhar para determinado ponto da Constituição. No que diz respeito ao conteúdo da doutrina jurídica, já na introdução redigida por Barbalho fica evidente o modo como esse tipo de prática discursiva contribui para a construção do direito, tendo em vista que o autor se propõe a “mostrar de onde procede, de que modo se elaborou, o que em si contém, como se explica e fundamenta cada uma das disposições da Constituição de 24 de fevereiro de 1891.” Eleito para os cargos de Deputado e Senador Federal e, posteriormente, nomeado Ministro do Supremo Tribunal Federal, Barbalho foi uma das vozes mais respeitadas na seara do Direito Constitucional durante a primeira república, o que implica uma ampla recepção de suas idéias na prática jurídica brasileira.
CONCLUSÕES:
Lançar olhares sobre as produções bibliográficas no campo do Direito é atividade que contribui no esforço de reconstruir elementos da tradição do pensamento político-jurídico brasileiro, além de evidenciar de que forma os doutrinadores colaboram na concretização cotidiana do direito. O manual de Direito Constitucional escrito por João Barbalho no início do século XX é uma obra que representa a força social destes personagens jurídicos. Considerando que o livro procura sistematizar, explicar, interpretar e discutir a Constituição brasileira, numa formatação que incentiva o seu uso por operadores jurídicos, o papel que exerce na sociedade é decisivo, já que influencia as compreensões sociais e institucionais do país acerca do direito. Todavia, esta capacidade de exercer poder sobre o entendimento jurídico só se configura quando o autor dispõe de reputação na sua área de atuação e, por meio da recepção do seu trabalho, alcança um grande número de leitores. No caso específico do Direito Constitucional, ninguém mais autorizado oficialmente do que um membro do Supremo Tribunal Federal para discorrer sobre o tema, qualificação que dispunha João Barbalho.

Referências:
1. CAVALCANTI, João Barbalho Uchoa. Comentários à Constituição Federal Brasileira. Rio de Janeiro: Litho Typographia, 1902.
2. CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: UNESP, 1998. CAVALLO, Guglielmo, CHARTIER, Roger (orgs). História da leitura no mundo ocidental. São Paulo: Atica , 1998.
3. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 7. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingüísticas: o que falar quer dizer. 2. ed. São Paulo: Edusp, 1998.
Instituição de fomento: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro/Puc-Rio
Palavras-chave:  História Constitucional; Doutrina Jurídica; Primeira República.
Anais da 57ª Reunião Anual da SBPC - Fortaleza, CE - Julho/2005