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H. Artes, Letras e Lingüística - 1. Artes - 7. Música e Dança

PRÁTICAS MUSICAIS MAXAKALI: UM LUGAR DE SABERES MULTILOCALIZADOS

Euridiana Silva 1
(1. Departamento de Teoria Geral da Música, Escola de Música / UFMG)
INTRODUÇÃO:

Os Maxakali constituem-se enquanto sociedade pela comunicação com o mundo dos yãmiy (espíritos) por via da música. O sistema de rituais que ordenam a vida maxakali é realizado essencialmente pelo canto, sendo este um dom dos yãmiy concedido aos humanos, que, em troca, os alimentam, constituindo assim uma sociedade profundamente engajada na arte da troca. Observado isto, podemos perceber que a arte musical maxakali não trata apenas do objeto sonoro, mas sim de um sistema que rege uma sociedade, logo, não podemos considerá-lo isoladamente.

 

A resposta para a questão que muitas pessoas da área da saúde, ciências biológicas e sociais de “como a etnomusicologia pode contribuir com os estudos das demais áreas sociais e também biológicas?”, pode ser encontrada e bem justificada nas práticas maxakali. Percebemos que a música é um saber multilocalizado, com a qual podemos chegar a compreender diversas práticas sociais: o sistema de trocas, o sistema de parentesco, as práticas medicinais, o relacionamento com os brancos. O sistema musical é imbricado de mensagens relacionadas ao universo desse povo que, se corretamente compreendido, poderá ser considerado o universo referencial do mundo social.

 O trabalho usou da comparação, tal como todo trabalho de cunho antropológico, como um de seus pilares. Contudo, essa comparação  não se deu diretamente por uso de categorizações nossas, isto é, conceitos essencialmente nossos para compreendê-los. A prática da transcrição musical e análise, utilizadas por mim, talvez tenha sido a mais categórica, pois observou estruturas ainda não definidas por eles, mas sim por mim. Esse fato nos faz cair em uma das grandes questões discutidas na antropologia contemporânea ao se tratar da etnografia propriamente dita. Ocorre aqui, o perigo de se ver as coisas como eles não vêem. Contudo, já levando em considerações o fim da verdade absoluta e a aceitação dos regimes de verdades de cada cultura, retiro os meus a priori  na busca de uma musicologia nativa. O que foi observado pelo viés da comparação musical pode ser ou não desconstruído por eles  .

 

METODOLOGIA:

-       Estabelecer no material musical, através das transcrições, categorias observáveis por meio de descrição. As transcrições nos permitem visualizar os aspectos formais, a partir dos quais podemos definir as diferenças e semelhanças entre culturas diferentes, estabelecendo assim comparações. Note-se que, essas categorias observáveis, como já dito anteriormente, ainda são observáveis apenas por nós, brancos, visto não compreendermos ainda o sistema de análise musicológica próprio dos Maxakali.

-         Audição sistemática das gravações áudio e visuais, que nos levam a analisar a música in loco. Isso se torna importante na medida em que  percebemos onde se fazem as diferentes interpretações vocais da música: onde se vocaliza, onde se canta com letra, pois, desta forma percebemos as relevâncias na prática performática durante os rituais, que se torna outro ponto de comparação.

-         Análise das letras das canções nos trabalhos de tradução, trabalho particularmente complexo por estarmos lidando com uma língua não registrada – a língua dos yãmiy, buscando através dessa análise as possíveis relações texto-música, tais como onomatopéias, tipos de vocalizes que possuem relações com o enunciador dos cantos, entre outros.

-         Comparação com outros dados de pesquisas sobre os Maxakali e outros grupos de língua Gê, partindo de Seeger (1980) e Aytai (1985). Outros estudos são relacionais como os de Montardo (2002), Camêu (1977) que contêm transcrições de músicas Maxakali realizadas em 1948 por Max Bodin, Alvares(1992). Sendo ainda importantes o estudo mitológico desenvolvido por Lévi-Strauss e a teoria do Perspectivismo Ameríndio desenvolvido por Viveiros de Castro

-     Produção de textos e discussões entre os pesquisadores envolvidos.

 

RESULTADOS:

A transcrição musical de cantos do Yãmiyxop Xunim (ritual do morcego) resultou nas análises, que nos fizeram perceber o quão estruturados e elaborados são esses cantos. As diferenças, quase imperceptíveis numa primeira audição, na estruturação  dos cantos, do que chamei ‘início do ritual’, se desvelaram com o trabalho e suscitaram discussões sobre forma e conteúdo, início e fim de um canto, mas acima de tudo sobre o conter ou não palavras.

Em princípio canta-se somente com vocalizes ‘Ak, hak hak hak’. As ‘palavras’ não são cantadas, apesar de existirem, porque “yãmiy está com fome, está triste”. Classifiquei os trechos rituais então como, ‘sem substância’ (sem letra) e ‘com substância’sendo substância não só as palavras, mas também os alimentos que são trocados no ritual. Para os Maxakali essa substanciação ocorrerá no momento da troca: quando o espírito tiver recebido a substância ‘alimento’ será possível o fluir da substância ‘palavra’. Efetiva-se assim um sistema de trocas recíprocas, evidenciadas no próprio mito do Xunim.

Na narração do mito percebe-se importantes elementos presentes no decorrer do ritual:1) os humanos receberam a música quando, em contrapartida, eles doaram alimento – bananas – aos yãmiy; esse ato parece inserir-se no que Sahlins denominou mitopráxis, o mito se realizando, o que nos leva a pensar que os mitos mais do que simples ‘estórias’ são construtores da história de um povo, e atuam de fato, modificando essa história e seus significados e construindo sua ética e estética.2)  a música que o Xunim deu ao antepassado - Ak, hak hak hak; esse vocalize marca não só as músicas “sem substância” como também inicia e encerra todas as canções que transcrevi até o momento. Essa marca, tal como os glissando das finalizações, talvez nos ajude a chegar no gênero musical do Xunim, ajudando-nos a entender não só a enunciação dos cantos e também do ritual como um todo.

CONCLUSÕES:
O trabalho tem mostrado o quanto a etnomusicologia pode ser útil a si mesma, no seu fazer reflexivo, e aos outros campos de estudo. Não pretendendo ser contudo presa aos valores modernos  nos quais, tudo  deve ter um fim, uma utilidade, um necessário sentido último, pois ‘talvez o sentido íntimo das coisas seja não fazer sentido último nenhum’. Não se trata de um útil utilitarista, mas sim, de algo mais voltado para a episteme da imaginação, em seu ‘sentido último’ do pensamento. Ou seja,  não que a pesquisa vá trazer soluções para os problemas nas relações políticas entre Maxakalis e brancos, ou vá mostrar uma verdade absoluta de quem e como  são os Maxakali. A presente pesquisa, a meu ver, e a própria disciplina da Etnomusicologia, vêm instigar o pensamento, produzir um conhecimento, não necessariamente sólido, já que ‘tudo o que é sólido desmancha-se no ar’ e nem necessariamente profundo, pensando como Nietszche  que ‘não há nada mais profundo que a superfície’, mas um conhecimento transformador e, acima de tudo, em constante transformação.
Instituição de fomento: CNPq
Trabalho de Iniciação Científica  
Palavras-chave: Maxakali; música; Etnomusicologia.
Anais da 58ª Reunião Anual da SBPC - Florianópolis, SC - Julho/2006