IMPRIMIR VOLTAR
G. Ciências Humanas - 1. Antropologia - 8. Antropologia

IDENTIDADE E FAMÍLIA EM FOCO: PARENTESCO E PARENTALIDADES DE TRAVESTIS EM FLORIANÓPOLIS/SC

Fernanda Cardozo 1, 2
Miriam Pillar Grossi 1, 2
(1. Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC; 2. Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades/NIGS)
INTRODUÇÃO:

Este trabalho diz respeito a um estudo sobre os laços de parentesco e de filiação que unem travestis de camadas populares a crianças pelas quais aquelas sejam, direta ou indiretamente, responsáveis. Nesse sentido, busca ampliar as compreensões sociais de terminologias e de papéis sociais associados às travestis a partir das relações com as gerações posteriores e com o entorno que se lhes apresenta como família. A pesquisa se insere no projeto “Gays e Lésbicas: gênero e parentesco no Brasil contemporâneo”, desenvolvido por Miriam Grossi, e no projeto “Parceria Civil, Conjugalidade e Homoparentalidade”, de autoria de Miriam Grossi, Luiz Mello e Anna Paula Uziel – ambos realizados junto ao CNPq. A mesma teve início no segundo semestre de 2004, tendo seu desfecho nos primeiros meses de 2006. O objetivo inicial das investigações foi mapear casos de travestis que possuem filhos ou que participam do cuidado de outras crianças da família. A seguir, os interesses da pesquisa se ampliaram para as relações familiares que circundam essas sujeitas e para as terminologias de parentesco e nominações que as definem e as situam na rede familiar. Tal estudo apresenta sua relevância na medida em que busca um outro contexto a partir do qual as travestis possam ser visibilizadas, diferentemente daqueles em que têm sido tradicionalmente discutidas: a construção do feminino e a prostituição.

METODOLOGIA:

A pesquisa, de natureza qualitativa, foi realizada sob o referencial teórico-metodológico da Antropologia. Além do levantamento bibliográfico, realizaram-se entrevistas semi-dirigidas – mediante uso de gravador sob prévia autorização das entrevistadas – com as travestis contatadas através da Associação das Travestis da Grande Florianópolis (ADEH) e que participam do cuidado de crianças da sua trama de parentesco. Além disso, foram agendadas visitas às casas de algumas das sujeitas com a finalidade de se conhecerem pessoas consideradas por elas pertencentes à sua família. A partir dessa inserção, respaldada pelo uso do diário de campo (MALINOWSKI, 1978), fotos, depoimentos sobre a infância, conversas, opiniões, bichos de estimação e nominações se mostraram, por meio da observação participante e do processo de descrição densa (GEERTZ, 1978), elementos significativos daquele universo. Quanto aos procedimentos éticos, deu-se ênfase à permanente e dinâmica negociação que pesquisadores e sujeitos da pesquisa estabelecem enquanto atores da interação social promovida e, portanto, ao princípio do consentimento livre e informado que propõem as discussões da Associação Brasileira de Antropologia presentes na obra “Antropologia e Ética: o debate atual no Brasil” (2004). Às pessoas entrevistadas, foram assegurados os direitos de interrupção da conversa e de supressão de informações que considerassem danosas à sua intimidade.

RESULTADOS:

Quatro agrupamentos familiares foram analisados, dentre os quais havia três travestis que auxiliam na criação de seus sobrinhos; uma que possui um filho biológico que passou a ser criado pelos pais adotivos da mesma e a quem ela situa na posição de irmão; uma que adotou “à brasileira” (FONSECA, 2002) o filho de uma conhecida sua, sendo legalmente pai do menino. Entre os membros da família, admite-se a referência por meio de seus nomes de batismo, masculinos, sob o argumento de que os familiares as conheceram por tais prenomes; todavia, em ambiente público, chamá-las sob a desinência masculina pode constituir uma forma de violência, sendo que algumas solicitam serem referidas pelo nome feminino - este que, geralmente, é escolhido pelas sujeitas ou atribuído a elas por outras travestis. Esse trânsito permanente entre lugares e nominações femininos e masculinos é, em se tratando das relações familiares, atualizada, sobretudo, pelas crianças, seja no exercício do cuidado - tradicionalmente feminino - em contraposição à desinência de gênero com que as crianças são ensinadas a se referir às travestis - terminologias no masculino -, seja no questionamento que surge a partir da tensão entre o nome masculino que circula na família e a imagem de representação feminina que se apresenta às crianças. Os animais de estimação, as narrativas sobre doenças, a distância em relação às drogas e as experiências amorosas são recorrentes entre as travestis quando estas discursam sobre família.

CONCLUSÕES:

1. Nominação: a nomeação das travestis segue uma espécie de divisão entre espaços públicos, nos quais se solicita um reconhecimento político de sua identidade feminina, e espaços privados, em que há permissão para que o nome masculino seja acionado. Ela também gera laços de “amadrinhamento” entre as travestis que conferem um nome como identidade social e as que o recebem. 2. Parentalidade: a ambigüidade de posições de gênero é permeada por um jogo social que, de um lado, legitima o lugar das travestis no parentesco por meio da terminologia masculina e, de outro, torna socialmente inteligível e permissível o exercício do cuidado com as crianças por conta de sua identidade feminina. Há diferenças entre funções de afeto e de autoridade das travestis em relação às crianças, que parecem seguir a natureza do laço que as vincula (adotiva ou biológica) ou a economia das relações familiares na distribuição de papéis dentre os membros do grupo, ou seja, elas ocupam o lugar de afeto se houver na família homens que assumam a autoridade. 3. Relações familiares: a aceitação passa pela idéia de que ser travesti é um “mal menor” em relação às drogas ou ao crime. Os animais de estimação metaforizam relações e sentimentos humanos correntes no grupo, legitimam o estatuto de família segundo um modelo ideal e ocupam, em alguns casos, o lugar dos rebentos, sendo considerados filhos. A doença, por fim, aparece comumente como agregadora da família e como momento-limite da expressão familiar.  

Instituição de fomento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico/CNPq
Trabalho de Iniciação Científica  
Palavras-chave: Família; Travestis; Parentalidades.
Anais da 58ª Reunião Anual da SBPC - Florianópolis, SC - Julho/2006