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G. Ciências Humanas - 5. História - 2. História do Brasil
ESCRAVOS QUE MATAM SENHORES: O CASO DE FRANCISCO DE SALLES. CAMPINAS, 1876.
Maíra Chinelatto Alves 1
Robert Wayne Andrew Slenes 2
(1. Departamento de História - Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP; 2. Prof. Dr. Departamento de História. Universidade Estadual de Campinas UNICAMP)
INTRODUÇÃO:
A historiografia recente sobre a escravidão no Brasil do século XIX tem como característica fundamental salientar o papel ativo dos escravos, tanto em suas vidas pessoais como na sociedade em que estavam inseridos. Essa ação abrange diversos tipos de manifestações - como as culturais - mas a presente pesquisa tem um objetivo bastante específico: crimes de escravos contra senhores. O assassinato é definitivamente uma forma extrema de contestar a autoridade e a legitimidade senhorial, e indica um momento social específico. Havia diversas maneiras de manter os cativos sob relativa disciplina, desde os tradicionalmente conhecidos castigos físicos até formas positivas de incentivo, que incluem a esperança de manumissão por bons serviços prestados; a ascensão a ocupações mais especializadas e portanto menos desgastantes; e mesmo a possibilidade de cultivar roças, garantindo alimentação suplementar ou mesmo formação de pecúlio. A especificidade do crime de morte é que todas essas formas de controle (violentas ou positivas) não foram suficientes para manter os escravos no padrão de comportamento esperado - e mesmo necessário - para a continuação/vigência da ordem escravista. A análise detalhada desses casos é importante para o entendimento das peculiaridades das propriedades em que os crimes ocorreram (visto que realmente a maioria dos escravos não matava seus senhores), das formas de controle utilizadas pelos senhores e do motivo por que falharam tão claramente.
METODOLOGIA:
Para entender não só o momento do crime mas as condições em que ele ocorreu, foram lidos processos criminais e inventários post-mortem, ambos gerados pelas mortes dos senhores. O primeiro tipo de documento revela as motivações finais para os assassinatos, enquanto os últimos dão uma idéia geral sobre as propriedades em questão, como tamanho, que tipo de serviço era feito pelos escravos e as características destes últimos (suas ocupações, relações familiares, condições físicas). Além desses documentos fundamentais, outras informações foram obtidas através de registros paroquiais, como de batismos de escravos, que revelam os costumes familiares dos cativeiros e a forma como os senhores lidavam com isso (se permitiam casamento entre os cativos, se o batismo das crianças era feito individualmente ou em grupo, quem eram os padrinhos), além das relações sociais e de parentesco (consangüíneo ou ritual) dentro das senzalas. Outros documentos utilizados foram as notícias publicadas nos jornais da região sobre os crimes. Além de detalhes que porventura não estão nos processos criminais, essas notícias ajudam a entender a repercussão desses casos particulares na sociedade. Uma importante orientação teórica para o desenvolvimento desta pesquisa é a micro-história, pelo tipo de indagação feita ao documento - buscando respostas densas e detalhada - e por se tratar de casos específicos/não-usuais e procurar neles relações sócio-culturais características da sociedade em geral.
RESULTADOS:
Para a década de 1870, em Campinas, foram encontrados cinco casos de assassinato de senhores por escravos. Segue-se a breve análise de um dos casos pesquisados, referente a Francisco de Salles, assassinado em fevereiro de 1876. Cinco de seus dezesseis escravos foram julgados e condenados a açoites e ferros (inclusive uma mulher), sendo que dez foram presos, como participantes no crime. De fato, os interrogatórios dos réus revelam que o crime vinha sendo planejado por todos os cativos, e que se decidiu levar o plano à ação depois do que se julgou uma injustiça do senhor (castigos muito severos e a obrigação de trabalhar num domingo). Dentre os condenados, estava Benedicto, viúvo, feitor e que crescera junto com Salles. O impacto do crime transparece no inventário, em que se afirma o desinteresse em leiloar os escravos, pois seus preços estavam baixos por “todos elles acharam-se mais ou menos implicados no assassinato do seu senhor, segundo é público e notório”. Assim, a maior parte dos escravos foi vendida para o pai do assassinado, José de Campos Salles, que tomou para si a obrigação de cuidar do parco patrimônio herdado pelos órfãos, assim como punir privadamente os assassinos de seu filho. Algumas características se tornam claras: um senhor inábil, uma escravaria com potencial rebelde, apesar de especializações e famílias, uma propriedade que exigia demasiado trabalho dos cativos e uma motivação imediata resultaram no assassinato de Francisco de Salles.
CONCLUSÕES:
A primeira e mais óbvia conclusão alcançada com essa pesquisa é que a relação senhor-escravo é mais complexa do que parece, à primeira vista. Não é esgotada com a discussão violência versus incentivos positivos, nem com lealdade ao senhor versus lealdade aos escravos. Tais generalizações não ajudam a compreender as relações sociais do final do século XIX. Concluir que se o escravo era qualificado e tinha família não iria se rebelar é uma grande simplificação, não confirmada pelos documentos analisados nessa pesquisa. Um dos envolvidos no crime analisado havia crescido junto com o senhor e ocupava a posição de feitor, mas isso não o impediu de participar, em algum grau, da morte do mesmo senhor. A explicação para esses casos, portanto, deve provir do cruzamento de diversos fatores, entre os quais se incluem, sim, os incentivos positivos, mas também as condições materiais/econômicas da propriedade em questão, se o senhor era visto como justo pelos cativos, e até mesmo a experiência do senhor em seu papel dominador: se ele sabia ou não se colocar de maneira a não afrontar diretamente as expectativas de seus escravos, e qual a ligação destes com o senhor (por exemplo, há quanto tempo faziam parte da propriedade e quais os lugares de origem, se não tiverem nascido ali). No caso de Francisco de Salles, tratava-se de um jovem senhor, sem grande experiência nesse papel e que não soube tratar adequadamente seus cativos de forma a mante-los sob controle.
Instituição de fomento: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP
Trabalho de Iniciação Científica  
Palavras-chave: Brasil-Império; Escravidão; Micro-história.
Anais da 58ª Reunião Anual da SBPC - Florianópolis, SC - Julho/2006