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G. Ciências Humanas - 5. História - 8. História Regional do Brasil

"A BEM DA MORALIDADE E DA TRANQUILIDADE PÚBLICA": DISCURSOS LETRADOS E PRÁTICAS SOCIAIS DE VIDA NOS CORTIÇOS DE BELÉM (1895 A 1905)

Leticia Souto Pantoja 1
(1. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo / PUC -SP)
INTRODUÇÃO:

Na virada do século XIX para o XX, Belém do Pará sofreu uma série de intervenções arquitetônicas e políticas que pretenderam adequar a cidade aos ideais da república recém instalada, e principalmente, ao discurso letrado da modernidade, o qual se pautava no progresso das técnicas de administração urbana, no cosmopolitismo dos valores culturais e na moralização das práticas de vida privada. Nesse contexto, certos espaços e atores sociais foram alvejados pelo poder público e demais grupos letrados, que passaram a considerá-los indesejáveis ao novo cenário urbano que se tentava construir. Foram eles: os espaços de moradia chamados cortiços e seus respectivos habitantes. Todo este processo excludente justificou a elaboração de políticas públicas repressivas aos citados ambientes e seus moradores, como também acirrou o clima de tensão social e disputas em torno da utilização autônoma dos espaços citadinos. Por essas razões, este trabalho discute as imagens letradas construídas acerca da vida nos cortiços de Belém e suas relações com as práticas sociais diárias dos encortiçados, delimitando para tanto, a pesquisa do período denominado pela historiografia local de Belle Époque.

METODOLOGIA:

Com aderência a uma abordagem própria da história social, utiliza-se como fontes de pesquisa: legislação municipal (leis, decretos, resoluções e atos normativos), artigos de jornais locais e processos criminais envolvendo os delitos de ferimentos leves e graves, infanticídios, homicídios e furtos; ocorridos em cortiços no período estudado ou cujos réus / autores moravam nessas habitações. A leitura do conteúdo desses documentos permite identificar e compreender as formas de intervenção do poder público belemita sobre a cidade; como também, aponta as dissonâncias e o alcance dos discursos modernizantes formulados pelos demais grupos letrados da urbe, e ainda, no que diz respeito à análise dos processos criminais, ajuda a desvendar os modos de viver cotidianos dos moradores de cortiços; descortinando as tensões e os conflitos que se estabeleceram entres estes últimos e os segmentos ricos da capital do Pará acerca da utilização e ocupação do solo citadino.

RESULTADOS:

Os discursos dos jornais mostram quatro argumentos que legitimaram a atuação do poder público sobre os cortiços, a saber: a idéia que a cidade de Belém era moldura do progresso regional e por isso, deveria ser ocupada por um contigente humano disciplinado e, acima de tudo, moral; a noção de que os habitantes da urbe deviam abandonar o tempo passado, tido como bárbaro, voltando-se para novos padrões culturais e estéticos, que combinassem com a ética republicana. Isto significava extinguir práticas comuns antes da república, a exemplo dos sambas, jogos de cartas e vida em estâncias; a concepção que o privado deveria sintonizar-se com valores próprios dos grupos letrados republicanos; pautando-se no respeito à vida em família conjugal e patriarcal, no gosto pelo trabalho formal-assalariado e no zelo pela intimidade doméstica; a perspectiva de afastar fisicamente da cidade todos que não aceitassem essas idéias, sob pena da urbe retardar seu progresso. Em contradição, o cotidiano nos cortiços (visto nos processos) revela que era possível viver sem partilhar tais valores. Os encortiçados divertiam-se jogando dados, fazendo forrós que duravam toda a noite; sobreviviam de pequenos trabalhos eventuais, garantindo uma renda esporádica, mas também liberdade de trânsito pela cidade; praticavam pequenos furtos, não considerando isso delitos; e finalmente, constituíam relações de amor diversas do modelo familial-conjugal, tecendo amasiamentos que tinham códigos próprios de fidelidade.

CONCLUSÕES:

Os anos entre 1895 e 1905 mostram a significativa preocupação por parte do poder público, com os locais de moradia dos munícipes de Belém. Esse interesse decorria da crença de que no lar formavam-se os valores morais e culturais do cidadão republicano. Por isso, considerava-se que residir num espaço classificado como insalubre, violento e sem privacidade, iria refletir negativamente na construção do caráter público de seu morador; situação que retardaria o progresso local. Desse modo, os cortiços representavam grande ameaça ao desenvolvimento de Belém, devendo ser eliminados do cenário citadino, pois: tratavam-se de construções insalubres que facilitavam a propagação de epidemias; constituíam espaços exíguos que levavam à promiscuidade moral, em virtude da coexistência de um grande número de pessoas onde não havia possibilidade de separação das funções familiares e práticas de intimidade; e finalmente, eram redutos de gente considerada perigosa para a ordem social, tal como meretrizes, ociosos e delinqüentes. Na prática, embora esses discursos tenham legitimado a execução de medidas repressivas sobre esses espaços e sua gente, vê-se pelo conteúdo dos processos que não foram suficientes para afastar os cortiços da urbe, tão pouco para extinguir as práticas de vida dos encortiçados. Estes, infringiam a fiscalização, reconstruíam prédios demolidos, escondiam pequenos criminosos nos cômodos, sociabilizavam-se e brigavam com vizinhos, afirmando suas formas de viver a urbanidade.

Instituição de fomento: CAPES
 
Palavras-chave: Amazônia; Urbanização; História social.
Anais da 58ª Reunião Anual da SBPC - Florianópolis, SC - Julho/2006