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G. Ciências Humanas - 8. Psicologia - 2. Práticas Clínicas, Identidade e Relações de Gênero

Submissão e resistência: Explodindo o discurso patriarcal da dominação feminina

Martha Giudice Narvaz 1
(1. PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA, INSTITUTO DE PSICOLOGIA/ UFRGS)
INTRODUÇÃO:

A questão da submissão das mulheres às violências que sofrem é campo tenso de debate. Especificamente em relação ao silenciamento das mães das vítimas de incesto diante do abuso sexual das filhas há poucos e contraditórios achados. Este estudo problematiza os discursos condenatórios das mulheres vítimas de violência, em especial, das mães das vítimas de incesto, acusadas de cúmplices, de negligentes e de culpadas pelo abuso das filhas. Consoante com as epistemologias feministas, que advogam a ligação do fazer acadêmico com as práticas e lutas sociais, o interesse por esse tema emergiu de minha prática enquanto militante feminista, terapeuta de famílias e de grupos de mulheres e de meninas vítimas de várias formas de violência, sobretudo de violência sexual. Comprometido com o desvelamento de discursos e práticas aos quais interessa impingir às mulheres a responsabilidade por sua vitimização, este estudo  investiga as posições ocupadas por uma mulher, mãe de vítimas de incesto, diante dos abusos sexuais sofridos pelas filhas. Busca, assim, dar visibilidade não só aos discursos e às práticas mantenedoras do gênero feminino em posições de submissão, tais como o silenciamento das mães diante do abuso das filhas, mas também às estratégias de resistência às violências sofridas. Pretende, com isso, explodir o discurso patriarcal unívoco e homogeneizante de submissão das mulheres, resgatando o poder e a resistência feminina diante da dominação patriarcal inscrita na violência sexual.

METODOLOGIA:

O estudo foi conduzido em um Ambulatório de Atendimento a Famílias em Situação de Violência da Rede Pública de Saúde, em Porto Alegre. A participante foi uma mulher, vítima de diversas formas de violência, cujas filhas foram vítimas de incesto perpetrado pelo padrasto. O delineamento utilizado foi o estudo de caso, baseado em entrevistas. Foram realizadas duas entrevistas, totalizando cinco horas de duração. As entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas. Todo o processo de pesquisa atendeu às exigências da ética na pesquisa com seres humanos. Os dados foram submetidos à Análise de Discurso Francesa de Michel Pêcheux. Nesta abordagem, a análise dos efeitos de sentido dispersos nos enunciados busca encontrar os elementos regulares que desvelem a formação discursiva dominante de um discurso. Dado que uma fala é um recorte das representações de um tempo histórico e de um espaço social, a análise do discurso de uma única mulher remete-nos às condições de produção às quais estão capturados os discursos de muitas mulheres. Tal análise não ocorre descolada do olhar da interlocutora-pesquisadora-analista do discurso que, ao interpretá-lo, é também constituinte de seu processo de produção. A interpretação-desvelamento do discurso deu-se, neste estudo, a partir da perspectiva dos estudos feministas e das relações de gênero.

RESULTADOS:

A participante deste estudo ocupou diferentes posições diante das violências sofridas, tensionada entre a submissão e a resistência. Os processos constitutivos da  posição de submissão, caracterizada pelo silenciamento diante das violências sofridas foram: vivências de violência na família de origem; a re-vivência do abuso sexual sofrido em sua infância e a falta de modelos de família protetiva; as estratégias de culpabilização das vítimas, acusadas de sedutoras pelo perpetrador do abuso; o desejo de ter uma família e de manter a família unida; a dependência emocional e econômica dos parceiros abusivos; o medo do companheiro abusivo, que era violento fisicamente e fazia uso de álcool; a prescrição de obediência e submissão ao papel feminino e de controle e dominação ao papel masculino engendrada segundo ditames patriarcais patriarcais; e, a falta de apoio familiar, comunitário e/ou social. A posição de resistência da participante às violências sofridas envolveu várias formas de transgressão aos ditames patriarcais a ela impostos, tais como a fuga, a separação dos companheiros, a traição dos mesmos e a denúncia das violências sofridas. A posição de resistência constituiu-se a partir da revolta contra as violências sofridas e do acesso a recursos de apoio familiar, comunitário e social. O contexto da presente investigação também foi relatado pela participante como constitutivo da posição de resistência inscrita na denúncia das violações. 

CONCLUSÕES:

As posições ocupadas pelas mulheres diante das violências sofridas  devem ser compreendidas a partir dos discursos que as engendram, situados dentro de um contexto histórico-social marcado por complexas articulações de relações de poder e de dominação de gênero, etnia, classe social e geração. As mulheres e meninas vítimas de quaisquer formas de violência  e, dentre elas, as mães das vítimas de incesto, desempenham seu papel dentro do contexto das condições concretas de existência de que dispõem e da rede de apoio com a qual podem contar. Para que seja rompida a posição de submissão do gênero feminino às violências historicamente sofridas, é fundamental o suporte de uma rede articulada para a garantia dos direitos humanos das meninas e das mulheres. Ao dar visibilidade às formas de resistência feminina diante dos abusos sofridos, este estudo explode com a lógica patriarcal homogeneizante da dominação das mulheres como vítimas apenas assujeitadas. Uma vez que discursos condenatórios do feminino perpassam todo o tecido social e se constituem em formas de revitimização, há que se desvelar os discursos inscritos nas práticas de acolhimento, uma vez que podem contribuir para manter as mulheres em posições de submissão. Destaca-se a articulação e a capacitação da rede de acolhimento das mulheres e das meninas vítimas de violência, uma vez que o suporte social é fundamental ao engendramento das estratégias de resistência feminina às violências sofridas. 

Instituição de fomento: CNPq
 
Palavras-chave: violência; discurso patriarcal; resistência.
Anais da 58ª Reunião Anual da SBPC - Florianópolis, SC - Julho/2006