Ricardo Hirata. (Instituto de Geociências, USP) (coordenador)
Gerôncio Rocha (Departamento de Águas e Energia Elétrica)
Julio Thadeu Kettelhut (Secretaria dos Recursos Hídricos/Ministério do Meio Ambiente
Antonio Eduardo Lanna (UFRGS)
José Luiz Albuquerque Filho (Instituto de Pesquisas Tecnológicas, IPT),
Luiz Fernando Scheibe (Centro de Filosofia e Ciências Humanas, UFSC)
INTRODUÇÃO
As águas subterrâneas desempenham um importante papel e algumas vezes fundamental para o desenvolvimento social e econômico brasileiro. Estima-se que supram a necessidade de 35-40% da população do país e agreguem valor a um grande número de produtos duráveis e bens de consumo.
Representando 95% de toda a água líquida e doce do planeta, o reservatório subterrâneo (aqüífero) é utilizado por mais de 2 bilhões de pessoas no mundo, que, num momento de carência eminente do recurso, é o grande manancial estratégico para as próximas décadas. Sua baixa vulnerabilidade a variações climáticas, coloca as águas subterrâneas em uma posição ímpar quando se avalia a sustentabilidade das sociedades no futuro.
A despeito desta importância, o recurso hídrico subterrâneo tem recebido pouca atenção no país. Ressalta-se que pela Constituição Federal a dominialidade das águas subterrâneas é dos estados, sendo que estes estão em fase de implementação de suas política de recursos hídricos, não tendo sido, até o momento, implementado em todos os eles mecanismo que permitam a correta gestão de recursos hídricos. Os casos de contaminação de solo e de aqüíferos se avolumam, bem como problemas de superexploração (maior extração que a capacidade do aqüífero), mas pouca ação é tomada para a sua correção, colocando em risco o suprimento público e privado de água, sobretudo nos centros urbanos. O que os olhos não vêm, o coração não sente.
Neste contexto, o Sistema Aqüífero Guarani ganha destaque.
OCORRÊNCIA E IMPORTÂNCIA
Esse grande manancial de água subterrânea tem posição política, social e geográfica privilegiada, pois ocorre nos estados de grande concentração do PIB brasileiro, entre eles: Santa Catarina, Paraná, Rio Grande do Sul, São Paulo, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás e Minas Gerais.
Da sua gigantesca área de 1.200.000 km2, 2/3 ocorre no Brasil e 1/3, em regiões do Paraguai, do Uruguai e da Argentina. Centenas de cidades brasileiras de pequeno a grande porte são total ou parcialmente abastecidas pelo Aqüífero Guarani, incluindo Londrina, Campo Grande, Ribeirão Preto, Marília, São José do Rio Preto, entre uma centena de outras.
Cerca de 90% dessa área está recoberta por espessos derrames de lavas basálticas, o que lhe confere características típicas de um aqüífero regional confinado.
Nas bordas leste e oeste da bacia, faixas alongadas afloram à superfície, constituindo áreas de recarga direta do Aqüífero; a partir dessas áreas suas águas confluem para a calha da bacia do Rio Paraná (Figura 1).
UTILIZAÇÃO ATUAL E POTENCIAL
As águas subterrâneas do Aqüífero Guarani, por suas condições de ocorrência e padrão de qualidade, devem ser consideradas um recurso nobre. Embora possam ser utilizadas para os mais diversos fins, é necessário, numa perspectiva de futuro, indicar usos preferenciais compatíveis com a explotação racional do Aqüífero.
O abastecimento das populações é (e tende a ser) o principal uso. Esse uso preferencial decorre das vantagens comparativas com relação às águas superficiais, entre elas a qualidade natural da água e maior proteção frente aos agentes contaminantes; a quantidade de água assegurada ao longo do tempo, sem variação por causas climáticas; a flexibilidade locacional e de escalonamento das obras (poços) com a evolução da demanda por água; a maior economicidade dos sistemas de abastecimento na maioria dos casos.
Em segundo lugar, está o uso industrial. Unidades e pólos industriais cujos processos requeiram água de boa qualidade (alimentos, têxteis, cervejarias entre outros), inclusive com aproveitamento da sua termalidade.
O uso do Aqüífero para irrigação, embora já existente em algumas áreas, deve ser encarado com sérias restrições, tendo em vista que a irrigação consome, em geral, grandes volumes de água; além disso, nas áreas onde o Aqüífero ocorre em grande profundidade, há águas inadequadas para esse uso (teores elevados de salinidade e sódio).
Graças às suas altas temperaturas, a água do Aqüífero Guarani vem sendo utilizada para recreação e lazer, com a perfuração de novos poços profundos para tal fim. São balneários situados em cidades ou clubes de campo, distantes de praias ou rios limpos. Exemplos são os de Araçatuba-SP (969 m, 49°C); Francisco Beltrão-PR (1.470 m, 49°C) e Salto Uruguai (1.295 m, 48°C). Em Santa Catarina, citam-se os casos de Chapecó e Piratuba.
ESTÁGIO DE CONHECIMENTO E SUAS LACUNAS
Está em andamento o Projeto de Proteção Ambiental e Desenvolvimento Sustentável do Aqüífero Guarani, uma iniciativa conjunta dos quatro países (Argentina, Brasil, Uruguai e Paraguai), do Fundo para o Meio Ambiente Mundial (GEF) e da Organização dos Estados Americanos (OEA). Os estudos visam à implantação coordenada de uma estrutura técnica e institucional com vistas à proteção e gestão do Aqüífero.
O período de execução do “Projeto Guarani” é de cinco anos (2003-2008). Em cada país foi estruturada uma Unidade Nacional. No caso do Brasil, além da Unidade Nacional, foram organizadas Unidades Estaduais de Execução do Projeto nos oito estados abrangidos pelo Aqüífero: Goiás, Minas Gerais, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
O Projeto Guarani tem três diretrizes básicas:
• Consolidar o conhecimento sobre a estrutura, o funcionamento e as potencialidades hidráulicas, bem como das características geoquímicas do Aqüífero;
• Desenvolver um marco para a gestão coordenada do Aqüífero; e • Fomentar a participação pública, a educação ambiental e a comunicação social, de modo a garantir as reservas de água subterrânea para as atuais e futuras gerações.
Do ponto de vista do conhecimento técnico, algumas das principais lacunas
identificadas referem-se a:
• A grande extensão do Aqüífero Guarani, sedimentado em diversos ambientes geológicos e sob variados processos tectônicos, impuseram uma estruturação geológica complexa, incluindo uma possível compartimentação em blocos que restringem localmente o fluxo do aqüífero;
• A falta de conhecimento integrado da geologia, hidrodinâmica, geoquímica e isotopia de todo o Aqüífero não tem permitido, até o momento, estabelecer quais são as suas zonas de descarga, bem como a circulação e os fluxos de águas no seu interior;
• A definição da origem e ocorrência dos teores excessivos de fluoreto e outras anomalias geoquímicas em suas águas são ainda pouco entendidas;
• A recarga do Aqüífero Guarani deve ter uma pequena parcela vinda de unidades inferiores, pré-Guarani. Essa, com característica química bastante diversa, deve contribuir localmente para a mudança na qualidade das águas do Guarani. A quantificação e sua qualificação química são pouco conhecidas e podem estar na origem de certas anomalias geoquímicas e em erros de interpretação de fluxos regionais;
• A quantificação da recarga através dos basaltos da Formação Serra Geral e a conectividade entre essas duas unidades aqüíferas são desconhecidas. Além de controlar a disponibilidade à exploração de água do Guarani, o entendimento dessas relações hidráulicas permitirá prever a vulnerabilidade à contaminação do Aqüífero, protegido pelo Serra Geral.
No atual estágio de execução do Projeto é possível destacar os seguintes temas críticos (Anexo 1):
• Perigo de contaminação no Aqüífero Guarani, tanto natural como proveniente de atividades antrópicas;
• Perigo de superexplotação, ou seja, a redução da disponibilidade de água no Aqüífero ou incrementos no custo de exploração (sobretudo pela intensa interferência hidráulica entre poços); e
• Dificuldades para articulação e fortalecimento institucional, necessidade de aumento do conhecimento sobre o aqüífero e maior participação da sociedade no processo de gestão sustentável em todos os níveis, tanto nacional, estadual e local (prefeituras, comitês de bacias).
DESAFIOS
Os desafios que se apresentam para o Aqüífero Guarani são muitos e dependem diretamente, de um lado, da falta de conhecimento das características hidráulicas e hidrogeoquímicas do corpo aqüífero (Desafios Técnico-Científicos), e, de outro, da capacidade da sociedade e dos Estados de se organizarem para o gerenciamento sustentável do recurso (Desafios Institucionais).
Desafios Técnico Cientifico
Nos espaços estadual/provincial e municipal, os principais desafios são:
• Identificar as zonas críticas quanto à degradação da qualidade e superexploração.
Estas zonas permitirão estabelecer aquelas áreas onde a atuação de gerenciamento do recurso hídrico subterrâneo seja prioritário.
• Realizar pesquisas específicas, dirigidas aos problemas, aos temas críticos ou às lacunas de conhecimento que o Projeto Guarani, por sua escala, dificilmente dará conta em responder;
• Subsidiar os técnicos para elaboração de lei específica de proteção do manancial nas áreas de recarga (mais vulnerável à contaminação); e
• Capacitar profissionais no campo da hidrogeologia e da gestão integrada dos recursos hídricos.
Desafios Institucionais
Nos diversos níveis e escalas, os maiores desafios são:
• Construir um esquema de gestão participativa do Aqüífero.
• Há convergência entre atores no plano técnico-científico, porém há a necessidade de articulação institucional entre os governos dos quatro países que reforcem o papel positivo do Aqüífero como um dos fatores de integração entre os quatro países.
• Criar um plano de utilização e proteção do Aqüífero Guarani que esteja presente no detalhamento do Plano Nacional de Recursos Hídricos, a partir de 2007.
• Implantar e operar um sistema descentralizado de informações;
• Criar, instituir e tornar padrão um protocolo mínimo de normas técnicas de projeto, construção e outorga de poços entre todos os países e estados que exploram o Aqüífero Guarani;
• Ampliar os colegiados de gestão, tanto a nível nacional, como estadual, em sintonia com os comitês de bacia;
• Fortalecer os investimentos em informação pública e participação na gestão do recurso hídrico, incluindo a efetivação de programas de comunicação social e educação ambiental.
• Fortalecer os órgãos gestores, capacitando-os e aparelhando-os para a função da gestão efetiva do Aqüífero Guarani, incluindo a possibilidade de uma atuação articulada com outros órgãos estaduais e nacionais.
RECOMENDAÇÕES DO GRUPO DE TRABALHO
São elencadas as principais recomendações por parte deste GT para uma boa governança do Aqüífero Guarani:
• Implantar, no sistema de ciência e tecnologia, uma linha permanente de fomento à pesquisa voltada à solução dos principais problemas do Aqüífero Guarani
• Recomendar que sejam tomadas iniciativas de se colocar na pauta da discussão dos quatro países do cone sul um “Protocolo para utilização sustentável do Aqüífero Guarani” em benefício dos mesmos
• Incorporar o Aqüífero Guarani no Plano Nacional de Recursos Hídricos, como um programa regional (escala 1:250.000), com diretrizes de gestão da qualidade e quantidade das águas subterrâneas.
• Recomendar que a SBPC inclua em seus veículos de comunicação espaços para informações qualificadas sobre recursos hídricos subterrâneos.
ANEXO 1. Programa de Ações
De causas técnicas dos problemas do Aqüífero Guarani:
1. Geração de informação sobre poços e sobre o Aqüífero Guarani;
2. Controle da contaminação localizada do Aqüífero Guarani;
3. Controle da contaminação difusa do Aqüífero Guarani;
4. Implementação de normas e orientações para construção de poços;
5. Implementação de normas e orientações para gestão do Aqüífero Guarani;
6. Manejo adequado do solo urbano;
7. Manejo adequado do solo rural.
De causas econômico-gerenciais dos problemas do Aqüífero Guarani:
8. Implementação de Sistemas de Informação para gestão do Aqüífero Guarani;
9. Capacitação técnica;
10. Gestão do uso da água subterrânea do Aqüífero Guarani;
11. Gestão ambiental para proteção do Aqüífero Guarani.
De causas político-institucionais dos problemas do Aqüífero Guarani:
12. Aperfeiçoamento das Políticas Públicas relacionadas com o Aqüífero Guarani;
13. Aperfeiçoamento do Ordenamento Legal relacionado com o Aqüífero Guarani;
14. Fortalecimento institucional relacionado ao Aqüífero Guarani.
De causas sócio-culturais dos problemas do Aqüífero Guarani:
15. Educação formal e informal relacionada ao Aqüífero Guarani;
16. Promoção cultural relacionada ao Aqüífero Guarani;
17. Promoção dos princípios éticos e morais relacionados ao Aqüífero Guarani;
Dos vazios de informação sobre o Aqüífero Guarani: geração de informações relacionadas a:
18. Processos de contaminação;
19. Uso da água e solo
20. Gestão do Aqüífero Guarani;
21. Questões de gênero humano e o Aqüífero Guarani (uso de água por populações originárias, seus costumes e práticas culturais, etc).
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