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ETNOECOLOGIA, ETNOBIOLOGIA E AS INTERFACES ENTRE O CONHECIMENTO CIENTÍFICO E O CONHECIMENTO LOCAL
Natalia Hanazaki
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
 

O termo Etnoecologia, assim como o termo Ecologia Humana, claramente faz referência à interação entre pessoas e ambiente. Apesar disso, estas áreas de estudo enfocam perspectivas diferentes em relação a natureza dessas interações. Dentro da ecologia, a Ecologia Humana pode ser entendida como estudo das relações entre populações humanas e o ambiente e dos fatores que afetam estas relações, geralmente sob uma perspectiva adaptativa ou sob uma perspectiva sistêmica. Os estudos de ecologia humana, baseados em teorias e princípios da ecologia, enfocam temas como estratégias de forrageio, discussões sobre otimização, amplitude de nicho, diversidade de recursos, territorialidade, dinâmica demográfica, estabilidade e resiliência (Begossi, 1993).

Já a Etnoecologia tem suas raízes na antropologia, apesar de possuir influências de outras áreas (Toledo, 1992) e de hoje constituir-se claramente como uma área de confluência entre as ciências biológicas e as ciências humanas. A introdução do termo Etnoecologia na literatura científica está situada no ano de 1954, com a dissertação de Harold Conklin sobre a relação entre uma população das Filipinas com as plantas por ela manejadas. O estudo de Conklin enfatiza o reconhecimento dos ambientes na relação entre pessoas e plantas. Este estudo contribuiu para uma mudança no foco investigativo, em direção ao entendimento do ponto de vista nativo ou local (Nazarea, 1999), indo além de uma perspectiva meramente cognitiva, predominante na época. A partir de então, o prefixo “etno” começou a ser usado com dois significados: primeiro, para fazer referência a um grupo étnico em particular – assim, a etnoecologia é o estudo da ecologia de um dado grupo étnico, algo único na história deste grupo – e, segundo, fazendo referência às percepções ou visões do grupo indígena/local sobre o fenômeno em questão (Fowler, 2000). Outras áreas relacionadas às ciências naturais adjetivadas pelo prefixo “etno” possuem um histórico menos recente que a etnoecologia, como a etnobotânica e a etnozoologia. A etnobotânica, por exemplo, cujas raízes acadêmicas guardam relação com a botânica aplicada de De Candolle do início do século XIX (Clément, 1998), é um termo cunhado em meados da década de 1890 (Harshberger, 1896; Fewkes,1896). A etnobotânica é, muito provavelmente, a área correlata à etnobiologia e à etnoecologia com maior volume de pesquisas. Porém, diferente da etnobotânica, que pode ser situada dentro da botânica, a etnoecologia atualmente não pode ser situada apenas dentro da ecologia.

Uma outra perspectiva da Etnoecologia é oferecida por Gragson e Blount (1999), segundo os quais a etnoecologia é usada para cobrir toda uma gama de estudos de história natural derivados de populações locais e incluindo outras áreas de estudo como a Etnobiologia, a Etnobotânica, a Etnoentomologia e a Etnozoologia, mas não se restringindo à história natural a partir de uma perspectiva antropológica. A etnoecologia procura, então, fornecer um entendimento dos sistemas de conhecimento de populações locais (Gragson e Blount, 1999). Nazarea (1999) lembra que a etnoecologia investiga os sistemas de percepção, cognição e uso do ambiente natural, mas também não pode mais ignorar os aspectos históricos e políticos que influenciam uma dada cultura, bem como as questões relacionadas à distribuição, acesso e poder que dão forma aos sistemas de conhecimento e nas práticas deles resultantes.

Uma vez que a Etnoecologia enfoca os sistemas de conhecimento de populações locais, ela converge para a discussão sobre TEK, ou Traditional Ecological Knowledge. TEK é literalmente traduzido como “conhecimento ecológico tradicional”, entretanto, a palavra “tradicional” pode gerar dúvidas: primeiro, quanto à tradicionalidade dos detentores deste conhecimento (para mais discussões sobre tradicionalidade, veja Cunha e Almeida, 2000 e Diegues e Arruda, 2001) e, segundo, pela aparente contradição entre a noção de tradicional, aparentando algo estático, e a característica intrinsecamente dinâmica do conhecimento (Berkes, 1999). No intuito de minimizar estas confusões terminológicas, muitas vezes o “tradicional” é substituído pelo termo “local”.

Autores como Berkes (1999) e Berkes et al. (1998) dão ênfase aos conceitos ecossistêmicos nos sistemas de conhecimento de sociedades locais ou tradicionais. Estes conceitos ou noções ecossistêmicas refletem características percebidas localmente, como a unidade natural definida em termos de um limite geográfico e as interações percebidas entre os diversos componentes do sistema. Segundo Berkes et al. (1999), estes sistemas de conhecimento ecológico local são compatíveis com a visão emergente de ecossistemas como imprevisíveis e incontroláveis, cujos processos são não-lineares e possuem múltiplos estados de equilíbrio. Assim, o conhecimento ecológico tradicional pode complementar o conhecimento científico através do fornecimento de experiências práticas derivadas da convivência nos ecossistemas e respondendo a mudanças no ecossistema, numa perspectiva que converge com as propostas de manejo adaptativo (Holling et al. 1998).

A Etnoecologia, assim como a própria Ecologia, possui influências de diferentes áreas do conhecimento, e é caracterizada por uma consolidação relativamente recente. Um crescente interesse pelos aspectos aplicados da etnoecologia pode ser percebido a partir da década de 1980, com contribuições de pesquisadores das ciências humanas e, especialmente no Brasil, das ciências naturais. O amadurecimento da Etnoecologia traz algumas contribuições importantes para as questões que envolvem populações locais e recursos naturais. Primeiro, um arcabouço teórico e metodológico para compreender sistemas de percepção, cognição e classificação do ambiente natural por sociedades locais ou tradicionais. Segundo, o estabelecimento de uma ligação direta entre o conhecimento construído localmente e o conhecimento acadêmico-científico. Terceiro, a possibilidade de resgatar e valorizar um conhecimento que tende a desaparecer rapidamente. Por fim, vale ressaltar que estudos etnoecológicos, junto com suas implicações sociais, ideológicas e éticas (v. Toledo, 1992) possibilitam aumentar a representatividade de uma parcela da sociedade freqüentemente marginalizada nos processos de tomada de decisão formais, em relação aos recursos que utilizam.

Referências bibliográficas

Begossi, 1993 Begossi, A. 1993. Ecologia humana: um enfoque as relações homem-ambiente. Interciencia 18(3): 121-132. Clément, D. 1998. The historical foundations of ethnobiology (1860-1899). Journal of Ethnobiology 18(2): 161-187.
Conklin, H. 1954. The relation of the Hanunóo culture to the plant world. PhD. Dissertation. Yale University, New Haven, Connecticut.
Cunha, M. C. e Almeida, M. W. B. 2000. Indigenous people, traditional people and conservation in the Amazon. Daedalus 129 (2): 315-338.
Diegues, A. C. S. e Arruda, R. S. V. (orgs.) 2001. Saberes tradicionais e biodiversidade no Brasil. Ministério do Meio Ambiente, Brasília.
Fewkes, J. W. 1896. A contribution to ethnobotany. American Anthropologist 9: 14-21
Fowler, C. S. 2000. Ethnoecology. In: Minnis, P. (ed.) Ethnobotany: a reader. University of Oklahoma Press, Norman. P. 13-16. Gragson, T. L. e Blount, B. G. 1999. Ethnoecology: knowledge, resources, and rights. University of Georgia Press, Athens.
Harshberger, J. W. 1896. The purposes of ethnobotany. The Botanical Gazette 21: 146-154. Holling, C. S., Berkes, F. e Folke, C. 1998. Science, sustainability and resource management. In: Berkes, F. e Folke, C. (eds.) Linking ecological and social systems: management practices and social mechanisms for building resilience. Cambridge University Press, Cambridge.
Nazarea, V. 1999. Ethnoecology: situated knowledge/located lives. University of Arizona Press, Tucson.
Toledo, V. M. 1992. What is ethnoecology? Origins, scope and implications of a rising discipline. Etnoecológica 1 (1): 5-21.

Anais da 58ª Reunião Anual da SBPC - Florianópolis, SC - Julho/2006