IMPRIMIR VOLTAR
O CONHECIMENTO LOCAL NO SISTEMA DE CULTIVO EM ROÇAS EM SANTA CATARINA
Alexandre Siminski
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
 

De todos os setores econômicos, a agricultura é o mais vulnerável à degradação do ambiente, porque depende diretamente dos sistemas e recursos naturais (Colaço & Garret, 2002). Embora potencialmente negativa para a conservação dos recursos naturais, quando estes não entram na equação de produção, a atividade agrícola pode ter uma relação direta com a conservação dos recursos naturais, quer seja por sua dependência da biodiversidade pelo fornecimento de material genético para novos cultivares, quer seja pela necessidade de um ambiente equilibrado para o desenvolvimento agrícola (Berkes, et. al., 1995; Berkes e Folke, 1998; Jain, 2000; Peroni e Martins, 2000; Tuxill e Nabhan, 2001).

Segundo Paulus & Schlindwein (2001), a agricultura, antes de ser uma atividade essencialmente econômica, é uma atividade também cultural, e mais do que processos naturais trata-se fundamentalmente de processos socioculturais de uma construção humana, sendo fortemente influenciada pela carga cultural que carregam os indivíduos que a praticam. As práticas utilizadas pelos agricultores tradicionais em sua relação com o meio são fruto do que Grzybowski (1987) chama de saber camponês (ou saber tradicional), que tem sua lógica própria, decorrente das experiências acumuladas pelos agricultores em sua luta pela reprodução das condições de existência material e social. Esse saber caracteriza-se por ser heterogêneo, contraditório, difuso, dinâmico e com capacidade de renovação, em função de seu caráter prático e vivo. Ele é parte da cultura do agricultor e instrumento fundamental na elaboração de sua identidade social (Grzybowski, 1987).

A floresta, nas pequenas propriedades agrícolas do litoral de Santa Catarina, fazia parte de um ciclo de cultivo de espécies anuais, através da agricultura de pousio (agricultura itinerante, roça-de-toco, agricultura de coivara). Essa forma de cultivo constitui uma tradição milenar da maioria das populações indígenas, sendo assimilada pelas populações remanescentes dos processos de colonização. Nesse sistema, a floresta é suprimida e o solo é ocupado com culturas anuais por alguns anos até o declínio da sua fertilidade natural, sendo deixado em pousio até que tenha novamente condições favoráveis para de suportar um novo ciclo de cultivo.

Os agricultores, através do seu relacionamento com o meio em que vivem, adaptaram as técnicas de cultivo de modo a permitir a continuidade da sua estratégia no tempo e no espaço. Suas observações permitem enfatizar que o processo de sucessão e de recuperação do solo na região é muito rápido, e partindo deste pressuposto o sistema de agricultura de pousio teria um caráter de sustentabilidade, uma vez que nunca haveria a necessidade da derrubada de toda área de capoeira dentro das propriedades (Siminski, 2004).

Quando, no final dos anos 80, surgiram as novas Legislações para regulamentar a utilização dos recursos florestais e a fiscalização passou a ser mais intensa, ocorreram uma série de transformações no sistema produtivo e exploratório das propriedades agrícolas da região, resultado dos conflitos de interesses entre as partes envolvidas na questão.

Um dos pontos onde se observaram os maiores conflitos são os parâmetros que a Resolução no 04/94 do CONAMA estabelece para definir a vegetação no estágio inicial de regeneração, única vegetação passível de supressão total, como requer a roça-de-toco. Esse estádio sucessional na região, segundo a observação prática dos agricultores, ocorre entre cinco e sete anos após o abandono dos terrenos, período que difere em muito dos 15 a 25 anos de pousio necessários para a nova utilização da terra pelos agricultores. Essa limitação ao uso das áreas com remanescentes florestais é apontada como responsável pelo comprometimento da continuidade do sistema produtivo, uma vez que, pressupõe a derrubada da vegetação em um estádio de regeneração no qual a fertilidade do solo ainda não está recuperada do desgaste provocado pelos anos de cultivo.

Em 65% das propriedades da região estudada houve redução da área de cultivo nos últimos 15 anos. Com relação às mudanças no sistema de cultivo, estas podem ser caracterizadas de diversas formas: o tempo de repouso foi reduzido para evitar que as áreas onde a roça é implantada ultrapasse os limites permitidos pela legislação para derrubada ou corte raso; a localização das roças em locais mais distantes e de difícil acesso com a finalidade de se “esconder da fiscalização”; a quantidade de roças diminuiu consideravelmente e estas passaram a ser “menos móveis” e, como alternativa para evitar o declínio natural da fertilidade do solo esse passou a receber adubação (Siminski, 2004).

As áreas de formações florestais passaram por momentos onde se configuraram diversas perspectivas quanto ao aproveitamento de seus recursos e benefícios. Esse histórico confundiu-se muitas vezes com a própria trajetória de ocupação recente de toda região. Atualmente, segundo a percepção dos agricultores, as florestas têm reduzida importância dentro das propriedades agrícolas, passando de integrantes do sistema produtivo, como uma das etapas do ciclo (pousio), a um empecilho ao atendimento das necessidades dos produtores rurais.

A mudança na percepção da importância das florestas é resultante da intensificação das exigências para o uso de seus recursos, e da escassez de alternativas legais para o aproveitamento de seus benefícios. Dentro da sua percepção, os agricultores têm como estratégia não deixar as áreas de pastagem e capoeirinhas se desenvolverem, pois para eles isso significa uma redução do potencial de uso e conseqüente perda de valor da terra.

Anais da 58ª Reunião Anual da SBPC - Florianópolis, SC - Julho/2006