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Semeando interdisciplinaridade em Engenharia Biomédica: investigando a epilepsia
Antonio Carlos Guimarães de Almeida
Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ)
 

Laboratório de Neurociência Experimental e Computacional - Lanec

Departamento de Engenharia Biomédica – Universidade Federal de São João del-Rei

Abordar um problema interdisciplinar não é uma mera reunião de especialistas de áreas distintas, onde cada um deles atua somente naquilo que lhe compete. Certamente, é muito mais que isso. Toda a equipe precisa ter uma visão mais abrangente do problema, conseguindo abordá-lo a partir das diferentes áreas de conhecimento envolvidas. Para tanto, é preciso que a equipe inteira se capacite para as atividades. Isso faz com que cada membro, além de contribuir com a sua especialidade, consiga interagir com os demais, fazendo com que a interdisciplinaridade seja convivida.

Esta é a filosofia que rege as atividades do nosso laboratório. Por meio deste breve relato, pretendemos semear um pouco da nossa convivência com a interdisciplinaridade.

Começamos a estudar a epilepsia desenvolvendo modelos matemáticos e simulações computacionais junto ao Programa de Engenharia Biomédica da COPPE/UFRJ. Mais especificamente, abordamos o problema da sincronização inter-hemisférica hipocampal durante crises induzidas segundo o modelo kindling de epilepsia experimental. O modelo deveria nos auxiliar a entender os resultados experimentais oriundos do grupo de Prof. Lopes da Silva, da Universidade de Amsterdam. As dificuldades mais freqüentes eram sempre associadas à representação das manobras experimentais envolvidas em cada registro. Cada vez mais sentia-se que, apesar dos detalhes das descrições dos experimentos, faltava-nos vivenciar todo o processo de sua execução. Numa visita ao Brasil, o Prof. Lopes da Silva, durante discussões sobre as simulações, nos estimulou a investir ainda mais nos modelos que desenvolvíamos, aconselhando a montagem de um laboratório que desenvolvesse também as medidas experimentais. Segundo ele, somente a vivência com o problema nas suas várias vertentes faria com que a modelagem tivesse uma contribuição mais eficiente, tornando-se instrumento de análise das medidas experimentais. Além disso, a interação diária com a rotina experimental nos capacitaria a propor novos experimentos. Pois foi exatamente o que verificamos logo após a conclusão daquele modelo. Conseguimos simular o rítmo teta característico da estrutura hipocampal, simulamos a sincronização inter-hemisférica durante eventos epileptiformes, mas não conseguíamos entender porque, durante a despolarização sustentada, a atividade intracelular do nosso modelo não reproduzia as mesmas oscilações verificadas experimentalmente. Sabíamos que o espaço extracelular era o modulador dessas oscilações, mas nosso modelo, bem como tudo que era encontrado na literatura, não oferecia uma forma de representá-lo. Ficou claro que precisávamos ir mais a fundo no problema, mas era necessário compreendê-lo a partir de outro ponto de vista.

Atuando diretamente com um grupo experimental, do Instituto de Zoofisiologia da Unversidade Hohenheim, da Alemanha, chefiado pelo Prof. Hanke, nossa visão do problema começou mudar. O estudo do fenômeno da Depressão Alastrante (DA), descoberto por um brasileiro, Dr. Aristides Azevedo Pacheco Leão, em 1944, era objeto desse grupo. A DA é um fenômeno de propagação no qual no espaço extracelular acompanham severas alterações das concentrações iônicas do meio. A interação com o grupo ofereceu-nos a oportunidade de estudar a influência desse espaço sobre a atividade de tecidos neuronais e poderíamos nos inserir na abordagem experimental do fenômeno. Iniciamos aprendendo a técnica de patch-clamp, realizando experimentos com glias isoladas da retina. O intento era estudar a dinâmica dos canais de potássio gliais e inferir sobre suas atuações durante a propagação de ondas de DA. Preparando tecidos de diferentes espécies de animais, nos deparamos com diferentes morfologias dessas células. Vimos que para exercer sua função de regulação da concentração de potássio, glias sem estrutura ramificada, como é o caso das de pequenos roedores, com apenas dois curtos processos perpendiculares às camadas, usam a estratégia de se interligarem por meio das gap-junctions. As simulações nos mostraram que essa é uma configuração de estrutura que permite um efeito funcional semelhante ao de glias de aves, com extensas arborizações de seus processos. Essa identificação mostrou-nos que ambas as geometrias têm um efeito funcional análogo, o que, além de ser uma constatação interessante sob o ponto de vista da neurociência, oferece uma forma simplificadora para a representação do mecanismo de tamponamento espacial. A riqueza de conhecimento adquirido com esses estudos mostraram que o que fora semeado pelo Prof. Lopes da Silva começava a germinar.

No Lanec, passamos a investir em montagens experimentais e, em paralelo, os modelos matemáticos iam sendo desenvolvidos. Como nos interessava reproduzir a dinâmica de propagação espaço-temporal da DA, trabalhamos na construção de uma montagem para medida do sinal óptico intrínseco (IOS) dessas ondas. O envolvimento com essas medidas despertou-nos o interesse pelo entendimento da origem do IOS. A literatura sugeria que alterações das dimensões de organelas, na mesma ordem do comprimento de onda da luz incidente, deveriam ser a origem do espalhamento de luz. Mas a variação temporal do IOS durante a DA não nos parecia encontrar suporte somente neste mecanismo. As variações iônicas medidas durante o fenômeno fizeram-nos suspeitar de alterações dos índices de refração dos meios extra e intracelulares. Compreender o IOS oferecia a possibilidade de não só monitorar a propagação das ondas, mas também a relação de osmolaridade entre os meios. Um modelo computacional, representando o tecido com múltiplas interfaces intra/extracelular permitiu-nos estimar que variações na ordem de 0,01 da razão entre os índices de refração eram suficientes para promover espalhamentos de luz que justificassem o sinal óptico. Posteriormente, um físico, especialista em óptica, interessou-se pelo problema e utilizando microesferas, comprovou experimentalmente as nossas previsões. A partir daí, havíamos como simular mais uma medida experimental. O objeto de nosso estudo passou a contar com uma maior aproximação entre as abordagens teórica e experimental.

Simultaneamente, o grupo desenvolvia os modelos matemáticos. Em especial, se ocupava com a representação da eletrodifusão extracelular. As simulações permitiram reproduzir o potencial nesse meio durante a DA. Comparações com os experimentos mostraram que ali estava uma explicação convincente para a variação lenta do potencial. Às alterações das distribuições iônicas ao longo do extracelular correspondiam alterações do campo elétrico, gerando as variações lentas característica dos potenciais medidos durante a propagação do fenômeno. Interessante é que o problema que originalmente nos levara à DA, a despolarização sustentada durante a epilepsia, começava a ser resolvido. As alterações extracelulares configuravam um importante canal de acoplamento das atividades neuronais. Então, a literatura nos levou a trabalhos que tratavam das conexões não-sinápticas. Buscando desvendar os mecanismos responsáveis pela sustentação de crises epilépticas, na década de 80, dois trabalhos foram publicados quase simultaneamente na Science e na Nature. Ambos reportavam a possibilidade de se induzir atividades epileptiformes em fatias de hipocampo deprimindo-se as conexões sinápticas por meio de perfusão do tecido com soluções com baixo Ca++ e alto K+. Pareceu-nos natural que estruturássemos antes um modelo do hipocampo considerando somente conexões não-sinápticas. Esse deveria ser o arcabouço do tecido, que deveria ser preparado para, posteriormente, receber toda a circuitaria sináptica. Uma vez definida a estratégia, em colaboração com a Johns Hopkins University, utilizamos a infraestrutura laboratorial do Departamento de Engenharia Biomédica daquele centro de pesquisa e conseguimos dominar os experimentos de indução das atividades epileptiformes não-sinápticas. O envolvimento com essa parte experimental, mais uma vez, comprovou ser fundamental para nos capacitar a desenvolver o modelo matemático. O desafio era ainda maior que o que enfrentávamos para o desenvolvimento do modelo da DA. Ainda bem que o que já havíamos feito para o espaço extracelular seria igualmente aproveitado. A questão era a representação dos transportes iônicos transmembrânicos e as correspondentes movimentações iônicas ao longo do extracelular. Começamos modificando o famoso modelo de Hodgkin-Huxley para o potencial de ação, retirando a idéia de um circuito elétrico análogo para a membrana. Presumimos que seria adequado que todo o tratamento fosse eletroquímico. O tempo todo, a experimentação oferecia ao grupo intuição para a modelagem matemática. Quando simulávamos o procedimento de indução de atividade espontânea dos neurônios, incrementando a concentração de potássio extracelular, obtínhamos a deflagração de um evento epileptiforme que, entretanto, não finalizava. Pareceu-nos óbvio que os mecanismos de bombeamento expressos pela bomba de Na+/K+ deveriam ser incorporados. As simulações mostraram que a representação exclusiva dos processos de troca de 3 Na+ por 2 K+ não eram suficientes para por término a um evento deflagrado. Inspeções por meio do modelo mostraram que somente uma corrente hiperpolarizante seria capaz de promover uma repolarização das células para finalizar o evento. Imediatamente, nos lembramos do efeito eletrogênico da bomba de Na+/K+. Mas como incorporá-la no modelo matemático? Por uma questão pura e simples de simetria, nossa sugestão era de que se a bomba fosse tratada como um canal iônico, explicitar o potencial transmembrânico seria muito mais fácil. Seguimos esse caminho, a princípio, guiados pela mera justificativa de um artifício matemático. A bomba foi representada por um canal iônico que permeava um íon fictício (saldo da diferença entre 3 Na+ contra 2 K+). A partir de medidas relatadas na literatura, foram estimados o potencial reverso da bomba e as constantes de dissociação de K+ e Na+ extra e intracelulares, bem como de ATP intracelular. As concentrações do íon fictício eram, então, estimadas permitindo o cálculo da corrente produzida pela bomba e, daí, seu efeito eletrogênico. Resultado: os eventos simulados passaram a ter término e retornavam espontaneamente, tal qual nos experimentos. Agora, a partir do modelo, conseguíamos entender o que regia a duração de um evento, bem como o período inter-evento. Programamos experimentos para verificar nossa predições e manobras interferentes sobre a atividade da bomba, a partir de toxinas, como a ouabaínas, ou ainda manobras de hipóxia, foram simuladas. Posteriormente, o efeito previsto foi constatado.

Face aos resultados da atuação da bomba de Na+/K+ durante os eventos epileptiformes, resolvemos revisar, na literatura, trabalhos relativos a modelos matemáticos para a enzima Na/K ATPase. Qual não foi a surpresa ao nos reportarmos à década de 60, defrontando com modelos que propunham ser a bomba de Na+/K+ um canal iônico com duas portas, as quais não se abrem simultaneamente. Esses trabalhos eram citados por outros mais recentes que investigam a atuação de uma toxina, denominada palitoxina (PTX). Essa toxina, ao se ligar à enzima da bomba promove o desacoplando das duas portas, resultando na estrutura de um canal iônico. Registros de patch-clamp confirmaram o canal formado pelo complexo. Assim, pensamos que nosso modelo para a bomba poderia ser melhor estudado se pudéssemos simular a atuação da toxina sobre a bomba. 45 reações químicas foram utilizadas para representar a interação do complexo Na+/K+-ATPase – PTX. As simulações permitiram além de reproduzir as medidas experimentais, interpretar os resultados de experimentos relatados, bem como identificar o estado de maior toxicidade do complexo. Além disso, nos indicaram que era factível prever a atuação da toxina sobre atividades epileptiformes não-sinápticas, uma vez que incluíssemos o modelo do complexo no modelo de eventos epileptiformes não-sinápticos. Simultaneamente, realizamos os experimentos. Jamais poderíamos interpretar os resultados experimentais, não fossem as simulações. A variabilidade das morfologias dos eventos não garantia qualquer consistência para medidas de parâmetros. Mas as simulações mostraram que essa variabilidade é provocada pela toxina que, ao atuar sobre parte das bombas de cada neurônio, cria canais cujas correntes atuam em oposição ao efeito eletrogênico da bomba de Na+/K+. Uma fez aplicada em baixas dosagens, a corrente pelos canais induzidos por PTX se equilibra com o efeito eletrogênico retardando sua atuação e, ainda, alterando a morfologia do evento. Não havia mais dúvidas de que não podíamos prescindir da interação entre os trabalhos de modelagem matemática, simulação computacional e realização das medidas experimentais.

É, portanto, claro que não conseguiríamos resolver esse problema, não fosse a interação diária de engenheiros (eletricistas e mecânicos), físicos e biólogos do nosso laboratório. Agora, nossa convivência com o processo da pesquisa interdisciplinar, já nos capacita para o desafio ainda mais complexo de incluir toda a circuitaria sináptica num único modelo. O interessante é que os alunos formados dentro do nosso grupo aprendem a exercer as atividades interdisciplinares de forma natural. Parece que a imersão diária nessa atmosfera quebra a dormência da semente e desperta a interdisciplinaridade.

Palavras-chave: Engenharia biomédica; ; .
Anais da 58ª Reunião Anual da SBPC - Florianópolis, SC - Julho/2006