60ª Reunião Anual da SBPC




G. Ciências Humanas - 1. Antropologia - 8. Antropologia

MOÇAS DE FAMÍLIA

Michele Escoura Bueno1

1. UNESP – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” / FFC - Marília


INTRODUÇÃO:
Foi no século XX que o movimento feminista atingiu muitas de suas maiores conquistas. No entanto, por mais que muitos valores e comportamentos sociais tenham se alterado profundamente nesse período, outros permaneceram irredutíveis. Dentre esses, um em especial é nesse trabalho discutido: a perpetuação de uma identidade de gênero feminina. Reconstruindo sua interface com a antropologia, o conceito de gênero é aqui entendido como um complexo operador social e simbólico que, a partir de diferenças percebidas – culturalmente – entre os corpos, elabora um conjunto de regras, hierarquias e signos que orientam as relações humanas. Desse modo, seríamos todas(os), desde os primórdios de nossa existência, socializadas(os) de uma forma a adequar nossa identidade de gênero ao nosso sexo “biológico”. Essa identidade de gênero atua como um rígido marcador social, que ao distinguir os indivíduos atribui valores e posições hierárquicas entre eles e assim, faz com que as diferenças passem a ser percebidas como desigualdades. O objetivo desse trabalho foi identificar os mecanismos sociais que retificam sob os corpos essa identidade de gênero, podendo, desse modo, apontar caminhos que busquem uma ruptura dessa reprodução, a fim de eliminar as desigualdades entre os gêneros.

METODOLOGIA:
Partindo-se da idéia de que a identidade de gênero começa a ser formada já nos primeiros anos de vida de um indivíduo, investigou-se a relevância da educação “informal” nesse processo. O ambiente familiar foi o lócus privilegiado da pesquisa, que percorreu quatro gerações de mulheres de uma mesma família a fim de perceber as nuances de uma feminilidade comum a elas. A investigação realizou-se por meio de pesquisas qualitativas, utilizando entrevistas e observações realizadas entre outubro e novembro de 2007, nas cidades de Bauru, Marília, Pompéia e Jundiaí (em São Paulo), nas residências das entrevistadas, que foram selecionadas a partir do recorte “feminino” da família, ou seja, a descendência de mulheres: nessa análise foram excluídas propositadamente as mulheres que estavam ligadas à matriarca da família por intermédio de algum homem (por exemplo, a filha do filho da matriarca), prevenindo assim possíveis intervenções de “valores masculinos” sob o objeto da pesquisa, que visava à comparação de valores “puramente” femininos. O roteiro de entrevista se orientou pelos relatos de vida e procurou destacar as especificidades de “ser mulher”: as relações com os pais, com os irmãos, com o marido, filhos e consigo mesma, com seus sonhos e suas memórias.

RESULTADOS:
Nos dias em que a pesquisa transcorreu, diversos elementos constitutivos de uma identidade de gênero marcadamente feminina puderam ser constatados. Dentre eles um, em especial, percorreu as quatro gerações femininas: a idéia da “moça de família”. Entre falas como “As mulher podia apanhar do marido que elas não podia reclamar, nem largar, elas tinha que agüentar” que representam a condição feminina nessa sociedade há pelo menos meio século, houve uma consonância entre as entrevistadas acerca do padrão de feminilidade que está posto e institui às mulheres um conjunto de regras morais e comportamentais: ser uma “moça de família” significa se adequar a esse conjunto de regras. A articulação dessas regras tem como base o desejo comum de casamento, uma vez que a possibilidade de realização dos sonhos românticos está condicionada ao bom desempenho da mulher como “moça de família”: “Uma moça não podia ter nada com um rapaz antes de casar. Porque senão, se ele não casasse com ela, nenhum mais casava”. A partir dessa articulação, criaram-se complexos mecanismos sociais e simbólicos que permeiam e orientam diversas relações entre os indivíduos, dentre elas as relações conjugais, de parentesco e consigo mesma: o autocontrole e conformidade às regras de uma identidade de gênero.

CONCLUSÕES:
A partir dos discursos colhidos na pesquisa, percebe-se que, apesar do tom repressor das normas sociais que regem o comportamento das “moças de família” e das dificuldades em segui-las, desenvolveu-se um complexo instrumento educacional para adequar àquelas mulheres a um ideal de feminilidade: as “moças de família” ilustram como o processo de socialização e educação familiar transmite, de mãe para filha, o mesmo desejo de atingir tal ideal. Articulando representações de sonhos românticos e de mulheres perfeitas que potencialmente realizam esses sonhos, as “moças de família” demonstram ser orientadas a viver sob esse ideal de feminilidade, adequando-se a normas e padrões culturais. Se, de acordo com o apresentado, esse ideal foi herdado por cada uma das gerações dessas mulheres, criando entre elas um mesmo padrão identitário de gênero, questiona-se então, em que medida tal identidade - marcada principalmente por estereótipos sociais condicionantes de papéis femininos e masculinos – fornece elementos para a reprodução ad infinitum de si mesma, uma vez que é pela educação no âmbito familiar que ela parece se difundir. Desse modo, surge a necessidade de repensarmos e transformarmos os valores sociais que estão dados desde nossa rede de sociabilidade mais embrionária, a família.



Palavras-chave:  Gênero, herança cultural, identidade

E-mail para contato: michele_escoura@yahoo.com.br