60ª Reunião Anual da SBPC




D. Ciências da Saúde - 7. Fonoaudiologia - 1. Fonoaudiologia

O DESENVOLVIMENTO DE LINGUAGEM EM LIBRAS: UM ESTUDO COM CRIANÇAS SURDAS

Rosana de Toledo Luciano1
Ana Claudia Balieiro Lodi1

1. Universidade Metodista de Piracicaba - UNIMEP


INTRODUÇÃO:
Esta pesquisa de iniciação científica teve como objetivo estudar o desenvolvimento da linguagem em Língua Brasileira de Sinais (Libras) de quatro crianças surdas. Todas as crianças tiveram seu primeiro contato com esta língua quando iniciaram seu processo educacional e passaram a conviver no espaço escolar com pares surdos, com uma educadora surda fluente em Libras e com intérpretes de Libras/Língua portuguesa. Para o desenvolvimento da pesquisa, adotou-se como base a teoria Histórico-Cultural, segundo a qual é por meio da linguagem que as pessoas irão se constituir como sujeitos, ou seja, é por seu intermédio que a criança ampliará suas relações com o outro e com o mundo, possibilitando o desenvolvimento das funções mentais superiores, processos estes mediados, em essência, por signos. A linguagem da criança, desde seu inicio, é entendida como essencialmente social, desenvolvendo-se no plano das interações sociais, nas relações interpessoais (Vygotsky, 1991). Assim, o desenvolvimento de uma criança ouvinte é decorrente das relações estabelecidas com Outro(s), desde seu nascimento, por meio da linguagem, assim como a constituição de sua subjetividade construída, cotidianamente, nas relações estabelecidas no ambiente familiar e em outros meios sociais freqüentados por ela com seus pais. Dessa forma, todo desenvolvimento da criança é mediado e, portanto, depende da presença do Outro, ou seja, será por meio do contato com uma pessoa que já possui o domínio da linguagem que a criança irá, dialeticamente, constituir-se como sujeito. No entanto, quando há um caso de surdez na família, esta terá que se reestruturar para, em seguida, proporcionar o desenvolvimento da criança, pois terá que lidar com a diferença do seu filho, principalmente com relação ao seu desenvolvimento de linguagem, pois a criança surda terá dificuldade em se apropriar da linguagem oral uma vez que esta privilegia a função auditiva. Dessa forma, para que o desenvolvimento de uma criança surda se dê de forma semelhante ao de uma criança ouvinte, aquela deve ser exposta a uma língua acessível, visualmente, para a construção deste processo: a língua de sinais. Assim, os pais deverão ser orientados sobre a exposição da criança, o quanto antes, a pares surdos - adultos fluentes e usuários da língua -, que serão os responsáveis por proporcionar as condições necessárias, por meio das relações interpessoais construídas, para o desenvolvimento lingüístico da criança. Pode ser destacado então, que assim como ocorre no processo de desenvolvimento de crianças ouvintes, o desenvolvimento de linguagem de crianças surdas também será perpassada pela relação com o Outro. Neste caso, a privação do contato com usuários da língua de sinais e o não acesso da criança surda a linguagem familiar - linguagem oral da língua portuguesa -, irá fazer com que seus membros recorram a gestos caseiros, a fim de garantir uma comunicação mínima para a satisfação das necessidades básicas da criança. Entretanto, somente a satisfação de tais necessidades não garantirá seu desenvolvimento, pois ela estará privada de organizar pensamentos, realizar novas aprendizagens, entre outras coisas tão essenciais à vida cotidiana. Isso acabará gerando um significativo atraso no desenvolvimento de linguagem da criança, não por questões orgânicas, mas simplesmente por não terem sido dadas as condições realmente necessárias para que esse desenvolvimento ocorra. Assim, considerando as circunstancias sociais que não favorecem o desenvolvimento de linguagem por crianças surdas e frente a escassez de estudos nesta área em nosso país, torna-se necessário o desenvolvimento de trabalhos que visem conhecer o processo de apropriação da linguagem pelo qual passam as crianças surdas, se tem-se como objetivo propiciar condições de desenvolvimento para esta parcela da população da mesma forma como são propiciadas para as crianças ouvintes. Nesta perspectiva, foi desenvolvida esta pesquisa que teve como objetivo estudar o desenvolvimento da linguagem em Libras de quatro crianças surdas: duas que tiveram o primeiro contato com esta língua em fevereiro de 2005 (Luciano e Lodi, 2006) e duas que passaram a ter este contato em fevereiro de 2006. Todas tiveram este primeiro contato com a língua de sinais quando iniciaram seu processo educacional e, neste espaço, passaram a conviver com pares surdos, com uma educadora surda fluente em Libras e com intérpretes de Libras/Língua portuguesa. Procurou-se, com esta pesquisa, observar quais as atividades são mais apropriadas para o desenvolvimento da linguagem das crianças no que se refere ao uso da Libras nas diferentes situações desenvolvidas, quais os processos lingüísticos que são desenvolvidos inicialmente pelas crianças e como os conhecimentos construídos nesta e por esta língua nas diferentes práticas sociais interferem no desenvolvimento das crianças.

METODOLOGIA:
Para esta pesquisa foram focalizados dois espaços do ambiente escolar: oficinas de libras e a brinquedoteca da escola de educação infantil, pois são nestes espaços que as crianças interagem com a educadora surda; são, portanto, os espaços privilegiados para o desenvolvimento de linguagem das crianças. As crianças surdas freqüentam escolas regulares e participam do programa de escola inclusiva bilíngüe (projeto mãe da orientadora). Para este estudo elas foram denominadas Miguel e Laura, de 6 anos, e Vinícius e Pietro, de 5 anos. Inicialmente, as quatro crianças foram observadas em suas atividades na Escola de Educação Infantil (EMEI); no primeiro semestre de 2007, Miguel e Laura foram transferidos da educação infantil para o ensino fundamental e, portanto, passaram a ser observados neste outro espaço educacional. Os eventos investigados referiram-se a situações de interlocução em oficinas de Libras desenvolvidas em ambas as escolas, espaço em que se faziam presentes crianças surdas, uma educadora surda e uma fonoaudióloga fluente em Libras; e nos espaço da brinquedoteca (existente somente na EMEI). Neste espaço faziam-se presentes além das crianças surdas, crianças ouvintes e a educadora surda. Como as interlocuções com as crianças surdas em ambos os espaços ocorreram em Libras, a coleta dos dados foi realizada por meio de filmagens. Foi realizado um estudo longitudinal, que visou estudar as interações e o uso da linguagem em diversas situações. O estudo longitudinal mostrou-se o mais adequado para tal fim, uma vez que possibilitou ver a realidade se apresentando “em processo”, revelando as interações e, conseqüentemente, o uso da linguagem nas diversas situações, possibilitando ao pesquisador uma visão ampla dos processos e dos produtos sociais construídos nestes espaços. Para a análise dos dados, adotou-se uma metodologia de pesquisa qualitativa que buscou descrever ou reconstruir o cenário do processo de desenvolvimento de linguagem das crianças. Assim, o método de análise procurou descrever e compreender a lógica interna, a dinâmica e as contradições dos processos envolvidos nos usos da(s) linguagem(ns) em Libras. Este modo de estudar as particularidades discursivo-enunciativas das línguas aproxima-se da análise microgenética realizada nos estudos desenvolvidos à luz de uma perspectiva vygotskyana, nos quais se enfatiza a necessidade de realização de uma análise minuciosa de um processo, buscando compreender sua gênese social (e, portanto, sócio-ideológica) e as transformações desse processo no curso dos eventos observados (GÓES, 2000).

RESULTADOS:
O desenvolvimento de linguagem de Miguel vem sendo estudado há dois anos. A criança, desde o início, participava de jogos de nomeação, iniciava diálogos, porém de forma ainda bastante tímida. No segundo ano deste estudo, pôde-se observar que Miguel passou a participar mais ativamente das atividades, mostrando-se mais atento e interessado nas oficinas, bem como comprometido com a realização das atividades. No entanto, observou-se que a produção de seus enunciados ainda estiveram na dependência do Outro, demonstrando pouca autonomia no seu dizer. No que diz respeito a Laura, também sujeito da Iniciação Científica iniciada em 2005, observou-se que ela, gradativamente, passou a fazer uso da linguagem, expandindo seus enunciados, principalmente em atividades em que não era compreendida. No entanto, da mesma forma como observado com Miguel, suas enunciações também estiveram na dependência do adulto, que buscava envolvê-la por intermédio de perguntas. Não demonstrou iniciativa no estabelecimento de um diálogo com os demais integrantes do grupo. Pietro, desde o início da pesquisa, mostrou-se bastante interessado e envolvido nas atividades desenvolvidas nas oficinas e também na brinquedoteca. Apresentou-se sempre comunicativo iniciando diálogos com os diferentes interlocutores e propondo mudança nos papéis desempenhados por eles. Quanto ao desenvolvimento de sua linguagem, passou a produzir enunciados relatando ações ocorridas nas figuras e relacionando fatos de sua vida cotidiana à história narrada. Além disso, nas situações de brincadeira vivenciou situações do mundo dos adultos trazendo para diferentes atividades as regras que regem o comportamento social. Sobre Vinícius, pouco se pôde dizer sobre seu desenvolvimento no início da pesquisa, pois o menino apresentava-se desanimado, afastado do grupo e não participativo nas atividades. Posteriormente, houve uma mudança em seu comportamento: a criança mostrou-se mais comunicativa e participativa, realizando jogos narrativos com seus interlocutores, produzindo enunciados a partir de figuras e propondo brincadeiras. Assim como Pietro, Vinícius também vivenciou, durante a brincadeira, situações regidas pelas regras sociais do mundo dos adultos.

CONCLUSÕES:
Os dados obtidos e analisados ao longo do estudo mostraram que as crianças apresentaram desenvolvimento de linguagem, porém com particularidades. As duas crianças que foram acompanhadas por dois anos e que, portanto, estiveram em contato com a Libras por um período maior de tempo, demonstraram um menor desenvolvimento de linguagem se comparadas com as crianças que iniciaram este contato com a língua posteriormente (em 2006). Embora não haja dados suficientes para afirmar o porque desta diferença, supõe-se que este fato possa estar relacionado: a) com as condições sociais/familiares das crianças; b) com um maior tempo de contato com interlocutores em Libras (entre os anos de 2005 e 2006, a brinquedoteca da escola estava em construção e, portanto, o contato das crianças com o adulto surdo ocorria, unicamente, nas oficinas de Libras); e c) com uma transformação do trabalho realizado pela educadora surda no decorrer do período estudado, na medida em que a formação deste profissional vem ocorrendo “em serviço” e, muitos dados desta pesquisa e da Iniciação Científica anterior (Luciano, 2005 e 2006) foram discutidos com a profissional durante o ano focalizado neste estudo. Em relação aos espaços observados, pôde-se observar nas oficinas de Libras desenvolvidas na Educação Infantil e Ensino Fundamental, a realização de atividades que propiciaram interação entre o grupo. No entanto, por ser um espaço sob responsabilidade da educadora surda e da auxiliar de pesquisa, observou-se que estas profissionais direcionavam as atividades. Embora a postura das profissionais tenha se transformado no decorrer do processo observado, nota-se que as atividades ainda permaneciam na dependência da proposta do adulto. Entretanto, deve-se enfatizar, que todas as atividades realizadas contribuíram de forma significativa para o desenvolvimento das crianças. Com relação ao espaço da brinquedoteca, observou-se que diferentemente ao que ocorria nas oficinas, as crianças estavam “livres” para realizar as atividades de seu interesse, fazendo com que a educadora surda ficasse a dispor delas para a construção das brincadeiras. Deve-se destacar ainda, que os conhecimentos adquiridos nas oficinas eram utilizados pelas crianças também no desenvolvimento das atividades da brinquedoteca, assim, situações vivenciadas pelas crianças durante a brincadeira continham os conhecimentos construídos nas diferentes práticas sociais. Afirma-se, então, que os espaços foram complementares e fundamentais para o desenvolvimento da linguagem. Conclui-se, pelos dados observados, que o processo de desenvolvimento de linguagem das crianças surdas pode ser comparado ao descrito na literatura para crianças ouvintes, desde que garantida uma língua que lhes seja acessível e a relação com adultos e pares surdos, usuários da mesma. Além disso, destaca-se a necessidade do estabelecimento de relações entre pares, sempre mediadas pelo adulto surdo, com maior freqüência do que a observada neste estudo, na medida em que os espaços investigados mostraram-se fundamentais para o desenvolvimento de linguagem das crianças.

Instituição de fomento: FAPIC

Trabalho de Iniciação Científica

Palavras-chave:  desenvolvimento de linguagem, surdez, Libras

E-mail para contato: rosanaluciano@hotmail.com