60ª Reunião Anual da SBPC




G. Ciências Humanas - 8. Psicologia - 11. Psicologia Social

NEGLIGÊNCIA NO CAMPO DA SAÚDE: ESTRATÉGIA DE GOVERNO DAS POPULAÇÕES

Bárbara Luciane Fischer1
Josiane Delazeri Hilgert1
Gisele Dhein1
Lílian Rodrigues da Cruz1
Vera Elenei da Costa Somavilla1
Betina Hillesheim1

1. Universidade de Santa Cruz do Sul(UNISC)


INTRODUÇÃO:
O presente artigo discute os sentidos que assume a negligência na infância para as equipes de Programa de Saúde da Família e como tais sentidos produzem as práticas de saúde. A negligência, entendida como negação de cuidados e de proteção ao desenvolvimento das crianças, tem sido apontada como um problema de saúde pública, constituindo-se, a partir de diversos estudos estatísticos, como a forma de maus-tratos mais prevalente na infância (Beserra, Corrêa & Guimarães, 2002). No Rio Grande do Sul num levantamento de violência realizado junto a 60 Conselhos Tutelares do Estado, entre os meses de agosto a outubro de 2005, foi constatado o registro de 1281 casos (CEDECA, 2005). Sobre o tipo de violência sofrida, tais registros apontaram negligência em 50,56% dos casos, violência psicológica em 22,08%, violência física em 17,58%, abuso sexual em 6,01% dos casos e exploração sexual em 2,58% (FEE, 2006). A negligência também tem sido apontada como principal motivo de ingresso em entidades de abrigo (Santos, 2004; Cruz, 2007).

METODOLOGIA:
Para tal, utilizamos dados obtidos mediante a observação da rotina de trabalho das equipes, especialmente das agentes de saúde discutindo quais os sentidos que a negligência na infância assume para as equipes de Programa de Saúde da Familia-PSF- e como tais sentidos produzem as praticas de saúde. A discussão foi realizada a partir de dois eixos que se fizeram presentes no decorrer da pesquisa e entre os quais oscila o discurso sobre negligência: ora esta é tudo, ora é nada. Abordamos as implicações desta oscilação e o que isto vem produzir no que se refere às práticas de saúde, buscando mostrar como o discurso sobre negligência não poderia ser outro, ocupando, a partir de determinadas ordens de saber e relações de poder, um lugar que nenhum outro poderia ocupar (cf. Foucault, 2004).

RESULTADOS:
Deleuze (2005) coloca que a definição de Foucault sobre poder parece simples: trata-se de uma relação de forças, constituindo-se como uma ação sobre a ação. O poder incita, produz, induz, desvia, facilita ou dificulta, amplia ou limita, torna mais ou menos provável, etc., não sendo somente repressivo, nem é algo que se possa possuir, mas passa tanto pelos oprimidos quanto pelos opressores. Foucault (1977), citado por Deleuze (2005), irá distinguir duas funções do poder que emergem ao mesmo tempo, no decorrer do século XVIII: a função disciplinar, que se exerce sobre um corpo qualquer e que divide o espaço, ordena o tempo e compõe no espaço-tempo; e a função do biopoder, a qual visa gerir e controlar a vida numa multiplicidade qualquer (a população). Tem-se então, nas sociedades modernas, uma anatomopolítica e uma biopolítica. Assinala-se ainda que o poder não se confunde com a forma-Estado, embora, em nossas formações históricas, esta tenha capturado tantas relações de poder. Assim, “o governo tem primazia em relação ao Estado, se entendermos por governo o poder de afetar sob todos os aspectos (governar as crianças, as almas, os doentes, uma família [...]” (p. 84). Pode-se assim perguntar: estes programas seriam os novos aparelhos da “Polícia das Famílias”? Vê-se que muitas ações configuram-se em dispositivos de controle sobre as famílias e os sujeitos, exatamente como ocorria com a figura do criminoso (Foucault, 1984) e com os dispositivos higiênicos que fundaram a família nuclear moderna (Donzelot, 2001).

CONCLUSÕES:
Em relação aos aspectos relacionados à negligência (e maus-tratos em geral) há uma via de mão dupla, pois os encaminhamentos se originam tanto dos PSFs para os conselhos tutelares, quanto no sentido inverso. A denúncia embasa os procedimentos de notificação, dando início (ou continuidade) ao escrutínio das famílias, como Foucault (2003) descreve no seu texto “A vida dos Homens Infames”, isto é, a denúncia implica a todos e introduz nas ações banais do cotidiano um estado de vigilância que permite a um só tempo o exercício do desejo de banir qualquer estranheza ou anomalia, como também cria canais para o exercício da vingança. Esta relação se ajusta bem aos procedimentos dos referidos programas, pois a denúncia relaciona-se aos pequenos desvios da normalidade: os ditos doentes, violentos ou prejudiciais. Deste modo, essas existências obscuras, que até então estavam condenadas a passar pela vida sem deixar grandes rastros, encontram-se, neste momento, com o poder e provocam suas forças. “O que as arranca da noite em que elas teriam podido, e talvez sempre devido, permanecer é o encontro com o poder: sem esse choque, nenhuma palavra, sem dúvida, estaria mais ali para lembrar seu fugidio trajeto” (p.207). Finalizamos articulando esta discussão com as noções de risco e vulnerabilidade, discutimos como o ideal de prevenção volta-se preferencialmente para os pobres, sendo que os sentidos produzidos para negligência integram as estratégias de governo da população. Além disto, quanto mais indefinido o conceito de negligência, mais este se ajusta às necessidades de controle dos sujeitos, integrando os procedimentos da biopolítica.

Instituição de fomento: Fundo de apoio à pesquisa-UNISC

Trabalho de Iniciação Científica

Palavras-chave:  Negligência, Governamentalidade, Infância

E-mail para contato: babiluci@hotmail.com