61ª Reunião Anual da SBPC
G. Ciências Humanas - 1. Antropologia - 5. Antropologia Urbana
DE BACH A MOZART: A CONSTRUÇÃO DE CARREIRAS NA MÚSICA SINFÔNICA.
Camila Oliveira Nascimento 1
Caetana Maria Damasceno 1
1. Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ)
INTRODUÇÃO:
Este trabalho é uma reflexão preliminar em que procuramos perceber um processo de deslocamento das carreiras de alguns músicos de uma Orquestra Sinfônica vinculada a uma igreja da Assembléia de Deus, localizada em Seropédica/OSAD, município da “Baixada Fluminense” ·, para outros espaços, como, por exemplo, o da Orquestra Sinfônica Brasileira-Jovem/OSB-Jovem, situada na cidade do Rio de Janeiro e outras instituições ligadas ao ensino de competências musicais.
METODOLOGIA:
Adotamos neste trabalho a perspectiva etnográfica tal como proposta por Clifford Geertz (1989): um processo interpretativo que permite não apenas descrever as atividades dos atores sociais, mas também orienta o observador a apreender, através da “descrição densa”, como esses atores as interpretam, refletem sobre elas e o que dizem sobre suas próprias experiências.
RESULTADOS:
A OSAD foi fundada na década de 1980 com o objetivo de “Louvar a Deus”. Esta opção parece fazer parte de uma política de aquisição de capital escolar (educação musical especializada) e de bens culturalmente valorizados (instrumentos musicais que necessitariam de um vasto conhecimento e treinamento para serem executados). No que diz respeito ao investimento institucional, a AD passou a manter em suas dependências (ao lado do templo), um conservatório de música , onde são oferecidos cursos de teoria e prática musical. Este espaço é coordenado pelo filho do pastor presidente, que também é o regente da OSAD. Os cursos oferecidos são pagos e atendem inclusive pessoas não vinculadas à comunidade de fé. A OSAD tende a ter como membros somente pessoas filiadas à AD. Vale ressaltar que todos os recursos financeiros são reinvestidos na própria OSAD por meio da aquisição de instrumentos e da contratação de professores, a maioria, oriunda das escolas de música do Rio de Janeiro como, por exemplo, a Escola de Música da Universidade :Federal do Rio de Janeiro (onde o próprio regente da OSAD se formou) e da Escola de Música Villa-Lobos. Interessa-nos agora, compreender o processo de deslizamento desses atores sociais de uma região onde o acesso aos bens culturais ligados à tradição musical sinfônica é limitado para outra onde esta tradição foi construída a partir do final do séc. XIX e durante o inicio do séc. XX. Trata-se, de fato, do deslocamento em direção ao eixo histórico de produção da “arte sinfônica”, que tem o Teatro Municipal, situado no centro da cidade do Rio de Janeiro, como emblema. Esta área, que vai do Teatro Municipal, passando pela Escola de Música da UFRJ, o Instituto Villa Lobos, até a Sala Cecília Meirelles, caracteriza-se pela produção de bens culturais e simbólicos. A “efervescência cultural” deste espaço tem os Arcos da Lapa como moldura, apontando para “marcos de memória” como o Convento de Santa Teresa (fundado em 1781) e o Convento de Santo Antônio (fundado em 1608). É justamente neste espaço sociológico que os músicos da OSAD passaram a experimentar novas formas de sociabilidade.(DAMASCENO,p.9:2008). Vale lembrar que estes músicos obtiveram suas primeiras competências musicais na instituição religiosa a que se filiaram e foram selecionados pela Orquestra Sinfônica Brasileira, que, desde 2000, investe na busca de “novos talentos”, através da criação da OSB-Jovem. Esta instituição passou, então, a ser o foco de atenção e destino destes músicos. Em trabalho anterior enfatizei o papel desempenhado pela OSAD com relação ao aprendizado altamente especializado de instrumentos, em geral muito caros e pouco acessíveis a vastas parcelas da comunidade de fé. Agora, vale examinar a mobilidade social desses músicos e a importância recentemente atribuída por eles à aquisição de capital simbólico e cultural. Nesse sentido não devemos esquecer que o Regente da OSAD já manifestara preocupação com a reputação, de seus músicos como veremos adiante, durante os eventos da AD, inclusive nos próprios ensaios da orquestra. Esta questão nos leva a indagar se o investimento feito pela AD resulta em prestigio institucional graças à inserção desses membros na OSB–Jovem. Durante nosso trabalho de campo, em 2008, observamos a participação dos músicos da OSAD (são por volta de quatro jovens, sendo que um deles é spalla ) nas apresentações da OSB-Jovem.. Algumas dessas apresentações faziam parte do Projeto Concertos da Juventude, ocorrido no Teatro Municipal da cidade do Rio de Janeiro, sob a regência do maestro Marcos Arakaki e direção artística do maestro Roberto Minczuk. Vale lembrar que essas apresentações tinham um caráter didático, voltado principalmente para pessoas que nunca haviam assistido concertos sinfônicos. O preço popular (“quase simbólico”) dos ingressos visa facilitar o acesso de pessoas com menor poder aquisitivo. Os membros da OSAD que participam da OSB-Jovem apresentaram-se, também, no mês de Junho de 2008, ao ar livre, no Largo da Carioca, no centro do Rio de Janeiro, em comemoração dos 400 anos do Convento de Santo Antônio. Devemos ressaltar, por outro lado, a participação do quarteto de cordas da OSAD nas comemorações ao Dia da Mulher, organizadas pela prefeitura municipal da cidade de origem da OSAD. Neste ritual, enquanto não se iniciava a apresentação do quarteto de cordas da OSAD (regido por um dos violinistas, membro da OSB-Jovem), foram colocadas músicas gravadas do tipo gospel. No entanto, durante a entrega de flores e de diplomas às mulheres homenageadas pela prefeitura, o quarteto de cordas da OSAD executou “músicas mundanas” , inclusive uma canção de Vinícios de Moraes (Eu sei que vou te Amar) que foi executada várias vezes. Nas apresentações da OSB-Jovem, feitas no Teatro Municipal, notamos a presença dos familiares de alguns membros da OSAD. Porém o que nos chamou a atenção é que em todas as apresentações que tivemos presentes, poucos familiares acompanharam as apresentações, observamos apenas duas famílias acompanhando os músicos. Vale ressaltar aqui, que um dos integrantes da OSB/Jovem que também pertence à OSAD é filho do maestro regente da mesma. Em uma conversa recente, o maestro procurou esclarecer sua posição quanto à saída de músicos da orquestra ligada à igreja para outros espaços. Para ele é fundamental a dedicação à OSAD. Um exemplo disso é que seu próprio filho, que chegou a ser o spalla na orquestra da AD, foi afastado desta posição “por falta de dedicação”, segundo às próprias palavras do pai.
CONCLUSÃO:
Percebe-se, pois, que a OSAD pode se constituir como um espaço a partir do qual é possível deslizar para outros, em busca de “profissionalização”, não somente para a OSB/Jovem, mas também para o Instituto de Música Villa Lobos e para a Escola de Música da UFRJ.. Há, pois, uma clara preocupação de seus instrumentistas, oriundos de classes sociais menos privilegiadas, em ascender profissionalmente, o que significa conquistar e ampliar capital escolar e em igual medida de capital cultural. Com efeito, através da OSAD, a igreja desempenha um papel importante no que diz respeito à democratização do ensino da música, dando oportunidades de ascensão social aos membros da orquestra que assim têm maiores chances de profissionalização e inserção no mercado de trabalho. O trabalho de campo de Elisabeth Travassos (1999) – “Redesenhando as fronteiras do gosto: estudantes de música e diversidade musical”- realizado numa escola de música do Rio de Janeiro (Instituto Villa Lobos/IVL) remete à questão de que os músicos provenientes do campo evangélico que freqüentam o IVL, “geralmente adquiriram as primeiras competências musicais nos círculos de sociabilidade de escolas ligados à igreja que freqüentam”. (TRAVASSOS, 1999:132). Ela chama a atenção para o fato para o fato de que “as igrejas são espaços musicais inclusivos que não colocam pré-requisitos técnicos rigorosos. Aí a regra parece ser fomento à participação que, por sua vez, promove a pratica musical.” (TRAVASSOS, 1999:132. Grifos meus). No entanto, nossa observação permite relativisar a perspectiva de Travassos, pois os tais “pré-requisitos técnicos” são centrais no nosso universo de pesquisa e, por isso mesmo abrem espaço para a inserção de setores da mambresia em grupos musicais, especialmente em orquestras sinfônicas, que levam à ampliação de capital escolar e cultural, como enfatizamos acima. Durante o “tempo da política” de 2008 tivemos a oportunidade de acompanhar alguns eventos relacionados à eleição municipal. Dentre esses eventos optamos por privilegiar os candidatos ligados de alguma forma ao campo pentecostal da cidade. Um desses candidatos é membro da Assembléia de Deus – a “igreja-mãe” onde atua a OSAD. Ele é, porém, o responsável por um pequeno templo situado no bairro “Mutirãozinho”, onde lidera a comunidade de fé. Neste templo tivemos a oportunidade de participar de um culto dedicado ao aniversário do candidato. Localizado em uma rua sem asfalto (região, onde se situa um Assentamento Rural), distante do centro comercial e administrativo da cidade, este templo tem instalações muito simples, bem diferentes das da “igreja mãe”. O ritual foi acompanhado por um pequeno grupo musical composto por um guitarrista, um baterista (filho do homenageado) e vozes de crianças (a filha do homenageado, entre elas), que se revezavam na execução dos cânticos. Pareceu-nos que a precária infra-estrutura do local expressava-se nas “frágeis” competências musicais dos músicos e contores/as como um indício de distâncias sociais, em termos de status, no interior da estrutura institucional da AD. Mesmo em um espaço delimitado como o da cidade na qual os evangélicos da AD identificam-se como “irmãos” e como “iguais“, ao observarmos – ainda que somente em termos musicais –, a estrutura da “igreja mãe” com a da igreja a ela “filiada”, parece haver indícios de que há uma forte hierarquização social institucionalizando-se por meio do maior ou menor acesso as certos bens e “serviços divinos”, tais como por exemplo, os que se expressam por meio dos investimentos na OSAD.
Instituição de Fomento: FAPERJ
Palavras-chave: capital cultural e simbólico, competências musicais, circulação e sociabilidade.