61ª Reunião Anual da SBPC
H. Artes, Letras e Lingüística - 3. Literatura - 1. Literatura Brasileira
“MIRE E VEJA”: REPRESENTAÇÃO, VIOLÊNCIA E TRAUMA EM “GRANDE SERTÃO: VEREDAS”
Giselle Bueno 1
1. Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada, FFLCH/USP
INTRODUÇÃO:

O objetivo deste trabalho é pensar os limites da categoria da representação, em sua conexão com os problemas da violência e do trauma,  na obra “Grande sertão: Veredas” de Guimarães Rosa. Na psicanálise freudiana, o termo trauma aplica-se a uma experiência que aporta à mente um acréscimo de estímulo excessivamente poderoso para ser manejado ou elaborado de maneira normal. Ocorre a recepção de um evento transbordante que vai além dos limites da nossa percepção. A volta constante da memória à cena traumática, determinada pela incapacidade de simbolização, é propriedade essencial do trauma, sob o qual a representação tradicional é impossível. A idéia é a de que, em “Grande sertão: Veredas”, às vezes, a violência, exibida em sua fisionomia banal ou rotineira, ainda é representável. E, mesmo em algumas ocasiões, quando a violência é trazida ao leitor como cena marcadamente hedionda, Riobaldo convoca a linguagem para que esta diga ou pareça dizer tudo. Finalmente, em outros momentos, a linguagem titubeia mais explicitamente ante uma ferocidade a tal ponto desnorteante que se apequenam melancolicamente as possibilidades de comunicá-la. Esse desamparo lingüístico pode assumir literariamente as feições de um trauma.

METODOLOGIA:

O procedimento metodológico funda-se na complexa interdisciplinaridade que é própria da dinâmica da pesquisa literária. Assim, as análises e conclusões abrigam-se sob um universo teórico coerente e compatível com o tema, mas também relativamente diverso e autônomo (por exemplo, são aceitas contribuições da História, da Filosofia, etc.). Não obstante, fica assinalado que a leitura interpretativa tem como eixo, principalmente, a interface entre Psicanálise e Estilística.

RESULTADOS:
A violência dos jagunços caracteriza-se por ser não apenas habitual e assim incorporada ao código de justiça, mas também glamorizada e, muitas vezes, avidamente desejada como traço de deferência por todos os que pertencem àquela cultura guerreira. O adestramento no combate e a afeição por ele ora tomados como naturais, ora resultados do próprio (e duro) aprendizado estão unidos a uma corajosa e impressionante resistência aos assaltos da agressividade inimiga. Em algumas ocasiões, denuncia-se, por detrás desse traquejo e endurecimento, um despreparo para a violência, em última instância, sempre presente. A carnificina dos cavalos é certamente abominação que rompe essa resistência, seja ela entendida por Riobaldo como fruto de um costume anestesiador, de uma natureza mais robusta e belicosa ou do cultivo diligente. Mas, no que se refere à autodefesa e receptividade do conjunto dos jagunços, a carga (quantitativa e simbólica) da violência é, em geral, absorvida pelo aprestamento guerreiro. É especialmente na estória de Riobaldo e pela sua perspectiva que podemos entrever momentos traumáticos, ainda assim combinados com a imago mundi jagunça e com uma disposição para matar e gosto da visão da violência que, algumas vezes, vai até a descrição da mistura imunda das tripas.
CONCLUSÃO:
Em virtude disso tudo, a palavra trauma só pode ser pensada aqui em constante dinâmica e contradição com a (idéia da) existência de um vigor ou tenência física e espiritual - de um potencial viril de valentia, hostilidade e brutalidade que é merecedor de dileção e amestramento.Esse desacordo dos fatos é perceptível na forma da narração, ou melhor, é por ela constituído. Não é impossível encontrarem-se trechos em que o desenho dos combates ou duelos tem algo de uma leveza ou frescor aventurescos ou de uma excitação pela energia tensa e movimentada que se transpira no suspense da ação: vez ou outra, a violência surge estetizada pelo narrador. Também se nos deparam ocasiões em que a representação total dos eventos é anunciada como possível ou como que levada até o fim (entre outros motivos, por uma vontade sádica que não se detém diante do abjeto). Finalmente há recuamentos éticos da linguagem ante a barbárie e cenas cujo excesso de violência põe em evidência a recepção (impossível) e a irrepresentabilidade do trauma: a capacidade da linguagem de dizer o real é, de forma paroxística, posta em xeque.
Instituição de Fomento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq
Palavras-chave: “Grande sertão: Veredas”, Guimarães Rosa, Violência.