Na tetralogia “Crônicas do Grão-Pará e Rio Negro”, o escritor amazonense Márcio Souza lança o olhar crítico a respeito do movimento histórico ocorrido no norte do Brasil até hoje pouco conhecido, a Cabanagem. Através de uma narrativa histórica, ora congruente a história oficial, ora revisitando a estrutura histórica de modo a propor uma nova visão dos acontecimentos os quais fizeram com que o povo paraense se revoltasse contra as instituições dominantes. Assim é delineada a proposta do romance histórico de modo geral, a recuperação da história, para isso o autor precisa se apropriar dos fatos históricos “O artista mergulha sensorialmente na experiência, na história, na tentativa de superar o mundo restrito” (Márcio Souza, 1977: p. 27).

Nesse sentido, propomos analisar os dois primeiros livros da tetralogia, “Lealdade” e “Desordem”, de acordo com os aspectos peculiares do romance histórico e personagens segundo Georg Lukács e por Mikhail Bakhtin.

Em “Lealdade”, os acontecimentos ocorridos entre 1783 e 1823 são narrados por Fernando/Pedro Barata (personagem-narrador) seguindo uma temporalidade cronológica, porém ocorrem lembranças que fogem da seqüência, dando a idéia de ser de fato um livro de memórias, da mesma forma com que acontece em “Desordem”, a narradora-personagem é Simone/Anne-Marie. Fernando/Pedro Barata e Simone /Anne-Marie são personagens fictícios, vivenciam os acontecimentos históricos anteriores e culminantes para o início da Cabanagem junto com personagens históricos inseridos na narrativa de forma ativa, não somente para ilustrar o enredo.

Textos em forma de documentos oficiais são inseridos nos livros para dar a narrativa um tom irrefragável. Os Personagens-narradores relatam fatos históricos em consonância com os acontecimentos de suas vidas, diferentemente de uma biografia, onde fatos históricos servem somente como plano de fundo “Se de algum modo estarei presente ou se discorrerei sobre meus atos, que os leitores —se os houver — não tomem isto como soberba, apenas como uma informação perfunctória e necessária sobre a autora destas lembranças” (Desordem, 2001:p.30).   

De acordo com estudos de Bakhtin, nota-se que nos os personagens históricos (Batista Campos, Filipe Patroni, Eduardo Angelim etc.) são imutáveis e os ficcionais (Fernando/Pedro e Simone/Anne-Marie) possuem um caráter variável, uma vez que os personagens estão em formação no desenrolar da narrativa “A formação do homem se apresenta em indissolúvel relação com formação histórica” (Bakhtin, 2003:p.221). Portanto, nos romances, as transformações sócio-econômicas e políticas ocorridas no Pará antes e depois de sua anexação ao Império do Brasil ocorrem concomitantes com as transformações psicológicas nos personagens.