61ª Reunião Anual da SBPC
G. Ciências Humanas - 5. História - 6. História Moderna e Contemporânea
LITERATURA E MEMÓRIA: O INDÍGENA NAS REPRESENTAÇÕES GAUCHESCAS DE SARMIENTO E HERNÁNDEZ
Ivia Minelli 1
José Alves de Freitas Neto 1, 2
1. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - UNICAMP
2. Orientador
INTRODUÇÃO:

            A idéia desenvolvida nesse trabalho faz parte de uma pesquisa realizada ao longo de dois anos sobre as obras de Domingo F. Sarmiento (Facundo: civilização e barbárie, 1845) e de José Hernández (Martín Fierro, 1872/79), sendo um desdobramento de projetos realizados sob a temática da representação indígena na literatura argentina. O intuito desse estudo foi, em linhas gerais, o de explorar algumas possibilidades teórico-literárias relacionadas à história política da Argentina no século XIX, momento em que as definições das fronteiras culturais são parte da consolidação e legitimação da identidade nacional. O indígena como objeto dessa pesquisa nos oferece a possibilidade de revisitar alguns pressupostos culturais arraigados pela historiografia argentina a respeito da ausência indígena que, embora tenha sido alijado historicamente, tem uma forte presença literária, ainda não explorada.

            As duas obras escolhidas para serem analisadas, por serem tidas como clássicas e referenciais à história do país, estão inseridas numa discussão própria da literatura gauchesca, um gênero literário de grande repercussão ao longo do século XIX que tem como motivo temático o modo de vida gaucho, a partir de sua expressão política, cultural e social na história argentina. Assim, Facundo e Martín Fierro pouco foram lidos sob olhares da problemática indígena, principalmente porque estes recebem um tratamento comum entre os autores, que estão imersos numa batalha intelectual pelas defesas de seus interesses através das distintas definições de suas personagens gauchas.

            E nesse ínterim está a nossa questão histórica: interpretar as construções discursivas que definem o lugar nacional de gauchos e índios na história da Argentina, compreendendo as relações entre o próprio gênero gauchesco e os ensejos políticos de um país após os processos de independência.

 

METODOLOGIA:

            Perceber que o indígena era mantido sob uma estabilidade discursiva, e que o maior embate entre Sarmiento e Hernández girava em torno das representações gauchas, nos fez refletir sobre as mobilidades do conceito de barbárie, apresentadas por María Rosa Lojo e Maristela Svampa, e as perspectivas que ele assume ao ser explorado por um texto literário. Duas constatações foram fundamentais para o desfecho da pesquisa: primeiramente sobre essa construção teórica, que descaracteriza qualquer definição ontológica do termo, encontramos diálogos entre os dois autores ao compararmos as formas como trabalham o gaucho e o indígena em seus textos, uma vez que realizam um entorno simbólico segundo interesses pessoais de escrita e acabam por definir o espaço da barbárie a partir de perspectivas estéticas. Isso significa que há um deslocamento simbólico dos caracteres bárbaros entre um e outro personagem conforme as disputas intelectuais vigentes, fato que constatamos nas inúmeras passagens semelhantes na definição do indígena e do gaucho bárbaros, nos revelando ser a barbárie a principal personagem retratada.

            Esses questionamentos estéticos nos levaram a pensar o ambiente literário em que se baseavam os dois autores, segundo uma base metodológica de nossa pesquisa centrada nas decorrências da relação entre Literatura e História, com o objetivo de ultrapassar as fronteiras limitantes que distinguiriam o documento histórico de um documento ficcional. Historiadores e literatos como Beatriz Sarlo, Antonio Cornejo Polar, Hayden White, Noé Jitrik e Roger Chartier, norteiam o desenvolvimento do trabalho a partir de suas reflexões a respeito da falsa inteligibilidade imediata transmitida por um documento literário, que deve ser entendido como um reflexo de expectativas de uma sociedade e não como um espelho desta. Nesse sentido, cada obra deve ser pensada numa verdade interna, encontrada no mundo possível criado pelos seus autores que, mesmo não correspondendo a fatos acontecidos, registram uma articulação sobre o real reveladora dos pensamentos de época.

            A história deve ser pensada como resultado das diferentes relações entre dimensões práticas e discursivas assumidas ao longo do tempo, o que nos sugere estar na própria estrutura literária de uma obra a produção de sentidos. Assim, estudar as formas de representação indígena possíveis numa realidade de anseios políticos no século XIX seria buscar desvendar as tramas estruturais da literatura e seus conseguintes significados para a sociedade argentina que a produziu.

RESULTADOS:

            As primeiras reflexões nos levaram a registrar o lugar do gaucho que, apresentado como o verdadeiro argentino a ser trabalhado em prol da civilização, nos ajudou a concluir que o indígena apenas seria entendido à medida que o contrapuséssemos ao próprio discurso sobre gaucho, não porque fosse uma simples sombra do outro, mas porque juntos revelam uma ordem discursiva oitocentista que busca os rumos possíveis de progresso para um país em processo de civilização.  

            Assim, nossas expectativas foram suplantadas quando encontramos a literatura gauchesca oferecendo e configurando um espaço de discussão determinado para o século XIX através de seus temas e abordagens empregados, o que implicou observar certa estabilidade do gênero nas mãos de Hernández e Sarmiento, tão distantes em tempo, problemáticas e posições políticas e podendo usar da mesma literatura para suas argumentações. Assim, a voz do gaucho seria um meio encontrado para os embates político-intelectuais da época, e não uma finalidade em si; a gauchesca possibilitaria em suas formas a sustentação de idéias diversas, dependendo do lugar discursivo assumido. E o indígena, sem espaço aparentemente definido na gauchesca, teria nesse motivo sua identidade histórica na argentina.

CONCLUSÃO:

            Hoje acreditamos que essa problemática histórica de um personagem tão forte na América e nas suas independências é resultado de uma completa e singular rejeição histórica do indígena, ou seja, ele não foi excluído meticulosamente pelos argentinos devido à força de sua representatividade nacional, mas pela simples caracterização que se apresentava aos objetivos do país. No final, a pesquisa nos revelou o caminho oposto do que propusemos inicialmente como análise: o indígena não era o problema a ser trabalhado no século XIX, mas o era a própria assimilação de um discurso histórico citadino assumido pelos político-intelectuais do período para a conformação de uma civilização argentina, o qual acabaria por determinar os constantes, e inclusive atuais, embates sobre a definição da identidade desse homem argentino. Assim, o gaucho representa em suas mais diversas figurações a grande complexidade de um país que assume como passado, como origem nacional, o próprio século XIX em que se vive e se constrói e que, por isso, define o indígena como um ser fora da sua história e que se resume à sua natureza bárbara.

            Essa simplicidade do olhar argentino ao indígena não significa, no entanto, que ele estaria destituído de certa função na organização da identidade nacional. Sem ser uma ameaça aos anseios argentinos na definição nacional, o índio tem em sua representação literária a síntese dos aspectos negativos de uma sociedade intelectual que digladia pela elaboração de projetos e de rumos civilizacionais, servindo como pano de fundo às discussões sobre questões políticas e intelectuais. Portanto, o indígena é importante para a argentina na medida em que é a única certeza entre todos os autores do que não se quer para o país, sendo inclusive representado sob as mesmas roupagens nas obras. O índio tem sua importância literária assegurada porque define uma oposição aos embates citadinos de Sarmiento e Hernández, garantindo na caracterização do elemento externo à sociedade almejada a manutenção e a autenticidade de um discurso argentino.

Instituição de Fomento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ)
Palavras-chave: Argentina, Literatura, Indígena.