Beijo na Boca (1975) é o terceiro livro de versos de Antônio Carlos Ferreira de Brito (1944-1987), o Cacaso. A eleição do amor como tema, além de ser uma surpresa ante a totalidade de sua produção poética, também é uma nota dissonante dentro do quadro mais amplo da literatura conhecida como "marginal", da década de setenta, no Brasil. Do ponto de vista do debate crítico e do embate das idéias, o crescente interesse da crítica literária hodierna tem contribuído para uma nova visada em relação aos poetas desta geração. Cacaso, talvez pelo fato de ter sido um de seus principais expoentes, é desses poetas que estão a respirar novamente. O objetivo de nossa pesquisa, portanto, é contribuir para o crescimento do debate, situando o livro Beijo na Boca dentro da produção poética de seu autor e também no contexto literário da década de setenta. Dessa forma, a análise dos poemas de Beijo na Boca é o ponto de partida para uma reflexão crítica sobre a trajetória poética de Cacaso.    

A complexidade dos versos de Cacaso, certamente decorrente de sua formação intelectual sui generis, exige que se adote uma metodologia capaz de se beneficiar da interdisciplinaridade. Este procedimento, aliás, costuma ser inerente à dinâmica da pesquisa em literatura e apresenta duas principais vantagens. Se, por um lado, promove resultados oriundos de análises amparadas em um determinado universo teórico, coerente e compatível com o tema da pesquisa, por outro, aceita contribuições de outras áreas do conhecimento, relativamente diversas e autônomas. Dessa forma, a Sociologia da Literatura, ancorada na Teoria Crítica, pode ter seu poder reflexivo potencializado ao incorporar contribuições advindas da Filosofia, da História e da Psicanálise.  

No quadro da produção poética de Cacaso, Beijo na Boca inaugura uma espécie de estética desencontrada, ou antes, dissimulada, em que as aparências poéticas enganam, mas também desenganam. O tema amoroso, que dá tônus aos versos, funciona como estratégia lírica, além de pôr em movimento um paradoxo constitutivo. Ancorada em uma espécie de double bind, isto é, tensionada entre a necessidade de dizer e sua impossibilidade fundante, entre a vontade de lembrar e os recalques da memória, esta poética impõe desafios para a análise. Ao ensinar a desconfiar das coisas tal como elas (a)parecem, o sujeito lírico problematiza não só os limites, mas, sobretudo, as possibilidades de representação poética. É neste momento que os versos encenam uma dialética poética sem síntese, portanto, sem superação. Quando a escolha entre dois poemas, entre dois amores, paralisa o sujeito lírico, a linguagem vale-se da ironia instrumental, geradora de ambigüidades semânticas. A desestabilização dos sentidos, decorrente do recurso irônico, amplifica contradições constitutivas, em estreito diálogo com o momento de produção. E, no limite, sinaliza a ausência de um sentido totalizante para o mundo, o que repercute na forma fragmentária dos versos. 

Beijo na Boca ocupa um lugar fundamental na trajetória poética de Cacaso já que, diferentemente de seus outros livros, introduz uma reflexão sobre a própria linguagem poética. Ao mesmo tempo em que concebe a palavra como mediação, e pondera sobre seu alcance, sinaliza sua insuficiência. Partindo da temática amorosa, coagulada no binômio amor/dor, Cacaso constrói uma poética auto-reflexiva, calcada em ambigüidades constitutivas. Pari passu, reflete sobre o Brasil de setenta, expondo suas contradições em versos. A articulação desses dois movimentos sustenta uma lírica que, ao dissimular suas verdadeiras intenções, mobiliza questionamentos não só epistemológicos, mas também hermenêuticos.