62ª Reunião Anual da SBPC
H. Artes, Letras e Lingüística - 1. Artes - 6. Fundamentos e Crítica das Artes
POÉTICAS CORPORAIS NAS ARTES CÊNICAS: INTERFACES ENTRE CORPOREIDADES, PROCESSOS CÊNICOS E SABERES CULTURAIS
Teodora de Araújo Alves 1
Tauany Thabata Teixeira de Freitas 1
1. DEART/UFRN
INTRODUÇÃO:

Não negar o corpo, não negar a vida, trabalhar o contexto cênico como extensão da vida, significa não excluir o sujeito da ação e as ações do próprio sujeito, não o desvinculando de suas referências e de sua história incorporada (ALVES, 2006). Esse movimento de inserção da história do sujeito na sua própria atuação cênica pode ser considerado já no início do processo de construção de um trabalho cênico, cabendo ao intérprete à realização de um inventário sobre as possibilidades de presença do corpo nesse contexto, não somente do ponto de vista de exercícios físicos, mas de suas dimensões enquanto sujeito histórico e cultural.

Essa condição de ser cultural inclusive em contextos cênicos, parece-nos bastante presente em manifestações culturais tradicionais que trazem em suas configurações elementos próprios de sua história, de seus enraizamentos e dinâmicas existenciais. Portanto, é nesse contexto que a presente pesquisa se insere ao investigar a presença cênica do corpo em manifestações culturais tradicionais, focalizando saberes cênico-pedagógicos que compõem a corporeidade de seus brincantes e os tornam intérpretes de sua própria história. Para tanto, partimos do pressuposto de que as manifestações culturais tradicionais são expressões que conferem aos seus brincantes um contato direto com elementos de sua cultura - seus gestos, seus cânticos, sua história étnica - manifestando assim uma cumplicidade do sujeito com seu próprio corpo.  Trata-se de certo modo, de um convite à vivência e convivência de atores, bailarinos, intérpretes, brincantes que, ao atuarem, dançarem, encenarem, brincarem não esquecem de fato quem são. 

METODOLOGIA:

A pesquisa partiu de uma construção epistemológica acerca da corporeidade, da criação cênica e dos saberes culturais de três (03) grupos tradicionais e representativos da cultura local do Rio Grande do Norte, que nesse estudo denominamos de expressões cênico-culturais, a saber: Congos de Calçola, Boi Pintadinho e Coco de Zambê.  Descrevemos interpretativamente cada uma das expressões, apresentando elementos convergentes e divergentes dos processos criativos e expressivos de cada uma delas.  Para tanto, focamos nosso olhar na direção do que o outro expressava através de suas dramatizações, músicas, palavras, gestos, silêncios, olhares. O olhar, segundo Bosi (1988, p.66), "não está isolado, o olhar está enraizado na corporeidade, enquanto sensibilidade e enquanto motricidade". Praticar o exercício da compreensão a partir do olhar que conhece sentindo e que sente conhecendo parece-nos um caminho importante. Para Merleau-Ponty apud Bosi (1988, p.66), o olhar fenomenológico "envolve, apalpa, esposa as coisas visíveis".  Assim, conhecer não é uma capacidade ligada apenas à racionalidade e a realidades externas ao sujeito, "já não significa que somos capazes de obter a imagem interna de uma realidade pura, absoluta e independente do sujeito, e sim que podemos produzir sentido em um mundo experiencial rico e dinâmico. Esta concepção implica que haja saberes e não verdades eternas" (NAJMANOVICH, 2001, p.129). Perceber, como compreende Merleau-Ponty, é estar envolvido na experiência da percepção, da sensibilidade. O corpo que tenho é o corpo que sou e justamente por isso percebo e posso ser percebido. Ser corpo é estar atrelado ao mundo. Não há dualidade entre meu corpo e minha subjetividade. Nessa direção investigativa, tivemos contato com os grupos durante 12 meses, para que nesse período pudéssemos vivenciar fatos e elaborações individuais e coletivas em seus contextos cênico-pedagógicos. Realizamos registros fotográficos e de vídeo, bem como entrevistamos os mestres e dois brincantes de cada expressão cênica. Concomitantemente a essa produção vivencial, construimos uma fundamentação teórica a partir de autores que discorrem a respeito de corporeidade, saberes culturais e processos cênicos, entre eles Merleau-Ponty, Edgar Morin, Marcel Mauss, Eugênio Barba, Graziela Rodrigues, Burnier e Durand.

RESULTADOS:

A pesquisa nos mostrou que nos grupos investigados os saberes em forma de mitos, rituais, gestos, palavras, cânticos, danças, são "narrados" numa intensa linguagem corporal que marca cada grupo tradicional como uma manifestação significativa da cultura local sem perder de vista as interfaces com outras referências culturais. Os brincantes mais antigos presentes nessas manifestações, incorporaram e incorporam pela percepção, pela vivência o mundo em que vivempercebembrincam. Para Merleau-Ponty (1999), "o mundo não é aquilo que eu penso, mas aquilo que eu vivo, comunico-me com ele, mas não o possuo, ele é inesgotável". Há de fato uma presença cênica nos corpos brincantes desses grupos que nos permite entendê-los não como um suporte de um texto narrado ou dançado, mas como parte de uma textualidade configurada a partir dos saberes culturais presentes na corporeidade de cada brincante. Há presença cênica, quando há percepção, construção de conhecimento, mudança de atitude, aprendizado. Recursivamente, esse processo ocorre, quando o sujeito está envolvido, é partícipe da construção cênica.  Quando não estamos inteiros numa situação, dificilmente a compreendemos, a percebemos e a expressamos com clareza. Da mesma forma observamos no campo cênico da dança e do teatro, corpos que tentam dizer algo e não conseguem expressar com uma certa convicção, com uma certa verdade. Falta um entrelaçamento sujeito-personagem, não necessariamente de cada um ser em cena exatamente o que é cotidianamente, mas de ser e expressar aquilo que se tornou significativo, perceptível, apreendido por cada um antes e em cena.  Construir uma presença cênica, ter um corpo-em-vida (Barba, 1995), ter uma maior percepção e incorporação do ato cênico depende de como o processo criativo, cênico e educativo se desenvolve. Aqui optamos por acreditar naquele processo que considera o sujeito na cena e as cenas vividas pelo sujeito, um processo que leva em conta as idiossincrasias do intérprete, os sentidos e significados presentes em cenas de sua própria vida, de modo que o ser cênico esteja presente de fato e de direito.

CONCLUSÃO:

Com a investigação foi possível ampliar epistemologicamente a área de conhecimento Arte, fundamentando-a do ponto de vista teórico e metodológico na direção de novas proposições científicas, artísticas e estéticas. Nessa perspectiva, a pesquisa serviu de referencial para os debates e novos estudos relativos à temática do corpo e da arte, bem como pode subsidiar pesquisas desdobradas desta, tanto na iniciação científica quanto na Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRN.

Instituição de Fomento: CNPQ e PROPESQ/UFRN
Palavras-chave: CORPO, PROCESSOS CÊNICOS, SABERES CULTURAIS.