62ª Reunião Anual da SBPC
G. Ciências Humanas - 9. Sociologia - 7. Sociologia
A MANDIOCA NOS FAZERES DO SERTÃO. PARA A ETNOGRAFIA DE UM VIVER PENSADO
René Gouveia Miranda Filho 1
Peregrina Fátima Capelo Cavalcante 1
1. Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará - UFC.
INTRODUÇÃO:
Tratando-se da realidade que possamos crer o que seja o mundo simbólico e o real, trago aqui em discussão um modo viver onde o alimento é parte de tantos significados de um viver embainhado de pensares. No imaginário que reluz a sabedoria poética dizem "O sertão vai virar Mar e Mar vai virar Sertão". Nessas complexas espacialidades há uma cultura na qual dediquei a pesquisar, a Cultura da Mandioca, planta majestosa, chamada de "Rainha do Brasil" por Câmara Cascudo. Dela se produz subprodutos, farinha e goma que são transformados em comidas nas nossas diversas culinárias. Em pesquisa realizada durante meu mestrado em Sociologia, apurei percepções, afetos e sentidos em torno das práticas humanas vivenciadas no beneficiamento da mandioca. Nelas o mundo empírico contornava as dobras do real, o entremeio da querência do possível que é "dito e feito", isto é, o que possamos chamar de realidade. No imaginário popular pudera compreender a mitológica engendrada nas crendices e expressões faladas pelo "homem simples" do Sertão. Nesse lócus me dispus apreender a produção do pensar não enformado pela razão prática e formal, e sim, donde se revela as naturezas humanas na criação de um habitus por meio da linguagem e da memória.
METODOLOGIA:
A casa de farinha é um lugar-tempo de uma poéisis intensificada nos afetos. Nos diálogos, interpretei uma libido, segundo Pierre Bourdieu conceituou como investimento, um capital-valor inquirido nas práticas dos indivíduos que num jogo de poder criam os objetos retóricos. O local escolhido para a pesquisa, a pequena comunidade Sítio Macaco II, Itapipoca/CE, a vida coletiva, concretamente pensada, transformava a farinhada em farinha em algo "vivido", "tocável" e também "simbólico". De cada partícula de mandioca processada em farinha e goma, foi gerado um produto social e mental fruto de quem plantou, colheu, raspou, cerrou, lavou, prensou e torrou. Das conversas nas muretas das casas, mercados e roçados surgiram muitas intersubjetividades que se concretizaram numa narrativa. Em uma pesquisa histórica, levantei dados de costumes edificados em uma cultura do convívio presente nas etnias que se somam a nós, a indígena, branca e negra. Modos de falar, receitas, cordéis e crendices formaram elementos constituídos de símbolos para entender a vida cotidiana. Com a observação participante, mergulhei em mundo de afetos que recortam as farinhadas. Neles estavam os reveladores das práticas embutidas da vida doméstica que transitavam em liminaridades entre o público e o privado.
RESULTADOS:
O que obtém o pesquisador ao fazer seu campo? Creio aproximar-se da realidade apanhando dela sentidos significantes. Ao interpretá-la, trazemos em bagagem as leituras do mundo, conceitos já formados que se azeitam nas percepções retiradas do exercício da investigação científica, daí porque criamos objetos. Becker (2007) ao questionar os parâmetros metodológicos pesquisáveis do social cita Thomas Kuhn, ao afirmar "ensinou-nos que as nossas observações não são 'puras', mas moldadas por - vemos aquilo sobre o que temos ideia, e não podemos ver aquilo para o que não temos palavras ou ideias". Norteadas minhas posições, aparto-me que não há neutralidade em uma ciência que se propõe discutir o social e a história. Muitas impressões e expressões partiam das ações dos indivíduos, e elas são contrapontos de algo vivido também em mim. Na estratégia investigativa, compreendi o campo como a base teórica suplantada em minha narrativa, sendo o habitus, memória e linguagem elementos que se entrecruzam na formação das nossas vivências. Imprimimos um no outro as marcas do convívio, em atributos e valores modelados inconscientemente que transitam retoricamente em nossos pensares, criando-se realidade(s), eis aí os nossos agires. Enfim, somos espelho um do outro em mundo pontuados de sombras.
CONCLUSÃO:
O objeto científico proposto desejou respaldar um saber local que transita numa memória coletiva e simbólica de um povo onde o alimento é uma forma concretizada no modus operandi que matiza a cultura na estetização de comportamentos, modos de falar e contar sua história. De modo mais abrangente que possamos discutir na sociologia, há um ethos, a mandioca faz parte de um processo civilizatório construído pari passus a formação da nação brasileira. A mandioca foi espalhada pelo litoral a partir dos Aruaques levando aos povos Tupi-Guaranis os usos e costumes no trato com essa planta. Das cercanias do litoral, ela adentrou os rincões do Sertão. Vejo oportuno na SBPC expor esse olhar investigativo talhado na vida simples do povo do Sertão arrastado do litoral. O "fazer farinha", como uma cultura de subsistência é um importante modo de produção que suplementa a economia de consumo e de pequenas trocas. No Sítio Macaco II, todos os anos os moradores produzem tradicionalmente suas farinhadas. Lá muitos já partiram deixando uma memória sobrevida, prazerosamente significada em conhecimento do mundo que os "identifica" sem criar "identidades". A Casa de Farinha do Macaco, não é "cena" e nem "palco", mas o "pano de fundo" da experiência ritual da "mitopráxis" de um viver pensado.
Instituição de Fomento: Fundação Cearense de Apoio à Pesquisa - FUNCAP
Palavras-chave: Habitus , Memória, Linguagem.