62ª Reunião Anual da SBPC
F. Ciências Sociais Aplicadas - 5. Direito - 13. Direito
ENTRE PESSOA E BEM: O TRATAMENTO JURÍDICO DO ESCRAVO NO BRASIL DO SÉCULO XIX
Brunello Stancioli 1
Daniel Ribeiro 1
1. UFMG
INTRODUÇÃO:

Apesar da temática da instituição escravista do Brasil Império já ter sido fartamente explorada em pesquisas historiográficas, há, ainda, aspectos do tema que merecem melhor elucidação e análise, e que são de grande interesse científico para o Direito. Particularmente, tentar entender a condição sui generis do escravo como "pessoa coisificada" fornece importantes subsídios para estudos de uma temática mais ampla na qual o presente trabalho se insere: a formação da pessoa brasileira, ou da pessoalidade no Brasil.

Tem-se que a figura do escravo representou um estranho paradoxo no processo de construção da pessoa brasileira: o ser humano escravizado definitivamente não era pessoa, ou cidadão, mas também não era mera coisa. O evidente rompimento da dicotomia pessoa-objeto - tão cara à Modernidade -, na tentativa de enquadramento do escravo, demanda novas formas de classificação e, mais que isso, exige uma compreensão mais adequada das maneiras como foi exercido o controle e restrição da pessoalidade escrava e também, em contrapartida, das estratégias de resistência e afirmação dessa pessoalidade pelo sujeito escravizado.
METODOLOGIA:
Investigam-se os aspectos que definiam a condição de escravo no universo brasileiro do século XIX. Para tanto, parte-se da construção pós-metafísica do conceito de pessoa desenvolvida por STANCIOLI, que acaba por delinear a pessoa que exsurge da modernidade através de três eixos fundamentais: a autonomia, a alteridade e a dignidade. Trabalhando com esses três eixos, com base na pesquisa de fontes primárias (principalmente documentos oficiais, documentos legislativos, escritos publicados em jornais, julgados, testamentos e cartas) e fontes secundárias, busca-se a compreensão de vivências da pessoalidade e da coisificação sob uma perspectiva metodológica que leve em conta o caráter eminentemente transdisciplinar da pesquisa, na tentativa da construção de um "meta-discurso" que seja capaz de abarcar conteúdos do Direito, da Sociologia, da Antropologia, da História e da Filosofia.
RESULTADOS:

Deve-se compreender que o processo de formação da pessoa que veio a emergir do escravo se deu por vias bastante tortuosas. A mera constatação de que a Lei Áurea (1888) operou a metamorfose do escravo coisa em pessoa livre é ingênua, e desconsidera a complexidade do tema abordado.

Em contrapartida, as próprias conquistas da luta abolicionista no Brasil, embora historicamente significativas, pouco empreenderam em favor de uma re-construção da pessoalidade do sujeito escravo. De forma que, ao fim do longo processo que culminou com a abolição da escravatura no país, ficou-se ainda com várias questões pendentes de debate. Questões essas que permanecem problemáticas até os dias de hoje, acerca do que significa, no Brasil, dizer que todos os seres humanos são pessoas iguais, livres e autônomas.
CONCLUSÃO:

Qualquer forma de restringir ou afirmar a pessoalidade passa necessariamente por controles do corpo. A corporeidade é dimensão inexorável da pessoa humana, pessoa essa que só exerce autonomia, se reconhece no outro, ou se realiza, através de uma base corpórea. Através de tecnologias de poder e dominação da subjetividade (FOUCAULT), amplamente empregadas no contexto do sistema escravista brasileiro, se tentou negar ao escravo o domínio de seu próprio corpo, e o mesmo escravo adotou estratégias de resistência justamente buscando retomar uma posição de comando quanto aos usos que se fazia do seu corpo.

Sobre essas formas ou tecnologias de poder e dominação da subjetividade do escravo, tem-se que, para além do controle físico, a atuação da Igreja Católica, detentora de um saber-poder sobre questões espirituais, permitiu um controle do corpo através da alma, definindo, dessa forma, novas conformações e modos de exercício da pessoalidade do escravo. Ao se considerar o monopólio moral exercido pela Igreja no Brasil, entender a forma como o dogma católico de que é a existência de uma "alma" que atribui personalidade ao ser humano se aplicou à figura do escravo é essencial para se compreender a eficácia que possuem os controles da alma para um controle efetivo do corpo.
Palavras-chave: ESCRAVIDÃO NO BRASIL, EXERCÍCIO DA PESSOALIDADE DO ESCRAVO NO BRASIL, CONTROLES DO CORPO.