62ª Reunião Anual da SBPC
H. Artes, Letras e Lingüística - 4. Lingüística - 5. Teoria e Análise Lingüística
NARRATIVAS ORAIS EM PARKATÊJÊ: CARACTERIZAÇÃO E DESCRIÇÃO DE UM TEXTO MÍTICO
Marília de Nazaré Ferreira Silva 1
1. Profa. Dra. - Faculdade de Letras (FALE), Instituto de Letras e Comunicação UFPA
INTRODUÇÃO:
Os povos indígenas brasileiros são detentores de uma vasta tradição oral. Conhecimentos, tradições e crenças eram repassados de gerações a gerações pelos textos orais. Embora muitos desses povos já tenham se encontrado com o mundo letrado, esse aspecto tradicional ainda persiste. É esse o caso do povo Parkatêjê, cuja língua Timbira pertence ao agrupamento linguístico Macro-Jê, família Jê. As histórias míticas, culturais, autobiográficas e cotidianas desse povo ainda se fazem conhecidas pelo contar. Nesse contexto, os mais velhos são exímios conhecedores dessa arte de contar histórias, por serem falantes nativos da língua indígena e por conhecerem sua cultura. O contexto mais familiar para a transmissão dessas histórias vem sendo drasticamente reduzido na comunidade indígena Parkatêjê devido, entre outros fatores, à entrada da televisão (e dos dvds) na aldeia, uma vez que essas atividades disputam o mesmo horário 'nobre'. Com a perda da língua indígena, a tradição cultural também está ameaçada e o prazer de ouvir as histórias tradicionais cedeu lugar às facilidades do mundo moderno. Neste trabalho, examinarei alguns mecanismos estilísticos que definem uma narrativa mítica em Parkatêjê, observando o uso particular de um conjunto de marcadores de tempo, aspecto e modo que caracteriza tais narrativas; os diálogos; o conjunto de partículas evidenciais; a utilização de ideofones e a repetição como mecanismo de coesão textual e de retórica. Além disso, essas histórias se caracterizam por apresentar uma fórmula introdutória, uma estrutura temática organizada em episódios.
METODOLOGIA:
Os dados analisados foram coletados por mim em minhas viagens de campo, iniciadas em janeiro do ano de 2000 e que desde então têm ocorrido pelo menos uma vez por ano. Até cerca de dois anos atrás, a coleta era feita apenas em áudio, entretanto a partir de 2008, comecei a gravar narrativas orais tradicionais em áudio e vídeo, a fim de poder contar com um material bem mais detalhado em diversos aspectos para a pesquisa linguística. Procedimento usual do trabalho de linguística antropológica, a coleta de dados é feita com auxílio de um falante proficiente em língua indígena, o qual gravou textos orais tradicionais em língua indígena e em seguida gravou uma versão livre em português. Em seguida, os textos foram transcritos ortograficamente palavra por palavra e uma tradução mais literal foi obtida parcialmente ainda, devido à ocorrência de palavras funcionais cujo significado precisa ser mais adequadamente definido. Foram utilizados os seguintes equipamentos para esse trabalho: uma câmera de mão SONY, gravador de cabeça, microfone externo e gravador digital Marantz. As gravações foram feitas com o auxílio do chefe Krôhôkrenhum Parkatêjê, de aproximadamente 80 anos. Em 2008, as sessões eram realizadas a partir das 3:00 às 6:00 horas, momento em que o chefe se dispunha a trabalhar por ser um momento mais calmo e silencioso. Já em 2009, após uma gravação realizada à tarde, quando lhe foi apresentado o vídeo, ficou decidido que o horário de gravações seria aquele e o de transcrições a madrugada.
RESULTADOS:
Uma narrativa mítica em Parkatêjê é um gênero textual que se caracteriza por apresentar uma fórmula introdutória, uma estrutura temática organizada em episódios. O texto Pyt me kaxêr é um exemplo disso. Ordenado em 5 episódios, agrupados em um único enredo, o texto narra, com riqueza de detalhes, situações vivenciadas pelo Pyt 'sol' e pelo Kaxêr 'lua', desde a criação do mundo, a feitura do primeiro índio, incorporando travessuras inusitadas da Lua, que decide, por exemplo, enganar o Jacaré, com o objetivo de fazê-lo atravessá-la de uma margem à outra de um rio. Nesse texto, observa-se o uso particular de um conjunto de marcadores de tempo, aspecto e modo que caracteriza tais narrativas; os diálogos, cuja mudança de turno é marcada pelo uso de posposições; um conjunto de partículas evidenciais, por meio das quais o falante expressa seu comprometimento em maior ou menor escala com a informação por ele dada; a utilização de ideofones, aos quais tenho chamado de a 'sonoplastia da narrativa' bem como a repetição como método de aprendizagem, como mecanismo de coesão textual e como princípio retórico. Além disso, essas pequenas histórias se caracterizam por ter sua 'moral', relacionada a um conjunto de valores culturais do povo Parkatêjê. Por exemplo, no episódio em que o Kaxêr 'lua' adoece e morre, o Pyt 'o sol' ensina-lhe como deve ser preparado o morto para o ritual funeral, desde o corte dos cabelos, a pintura corporal até a forma como o corpo deveria ser sepultado. Um outro fato muito interessante, captado pelas gravações em áudio e vídeo, é o fato de o narrador fazer uso de recursos cinéticos próprios de sua cultura (gestos), os quais podem indicar horários, locais, direção e marcação da distância espacial.
CONCLUSÃO:
As narrativas orais tradicionais do povo Parkatêjê são fontes de conhecimento cultural, que durante muitos anos foi repassado apenas oralmente. Os homens desse povo tinham o costume de reunir-se à noite para conversar sobre assuntos diversos falando em sua língua nativa, todavia com o contato intensivo entre essa língua e o português, e com a entrada da televisão, o espaço da narração de histórias (míticas, tradicionais ou mesmo cotidianas) foi perdido. O projeto ao qual esse trabalho se vincula teve por objetivo a gravação em áudio e em vídeo dessas narrativas tradicionais, objetivando ter acesso a toda essa cultura imaterial, além do material linguístico para os trabalhos de descrição. As narrativas não têm um título, mas os falantes conhecem o teor de cada uma delas. O trabalho com textos oferece uma riquíssima oportunidade de conhecimento de língua e cultura de um povo, em que se pode ter contato com informações nem sempre tão simples de serem obtidas como aquelas relacionadas à cosmologia, às crenças e ao folclore daquele povo. A estrutura textual pode ser muito diferente entre um texto narrativo e outro não-narrativo, com conteúdos particulares do tipo biográfico, expositivo, exortativo ou mítico, por exemplo.
Instituição de Fomento: U. S. AMBASSADOR'S FUND FOR CULTURAL PRESERVATION - Grant No. S-BR250-08-GR083. Project: Keeping the Talking Forests Alive: Documenting the Amazonian
Palavras-chave: Parkatêjê , narrativas orais tradicionais, estrutura do texto.