O presente estudo trata da relevância da utilização da Escala Wechsler de Inteligência para Crianças (WISC-III) na investigação acerca da ocorrência, natureza e extensão de prejuízos cognitivos associados ao tratamento a que são submetidas crianças diagnosticadas com Leucemia Linfóide Aguda - LLA, tipo de câncer mais freqüente na faixa pediátrica. A WISC-III é a principal referência de medida de inteligência de crianças e adolescentes e está composta por 12 subtestes, distribuídos em dois grupos: verbal e de execução. Os escores destes subtestes quando combinados fornecem os QI's total (QIT), verbal (QIV) e de execução (QIE), e quatro Índices Fatoriais, que refletem aspectos mais específicos do funcionamento cognitivo: Compreensão Verbal (ICV), Organização Perceptual (IOP), Resistência à Distração (IRD) e Velocidade de Processamento (IVP). A relevância desse estudo deve-se à contribuição que a WISC-III oferece ao direcionar hipóteses sobre áreas de disfuncionamento cognitivo, dado as recorrentes queixas de dificuldades sócio-acadêmicas encontradas nestas crianças após tratamento específico para LLA, bem como a escassez de estudos brasileiros que analisem a existência de impactos cognitivos e forneçam subsídios para o desenvolvimento de estratégias que minimizem tais prejuízos.

Participaram deste estudo 10 (dez) crianças, de ambos os sexos, diagnosticadas com Leucemia Linfóide Aguda, com idades entre 06 e 12 anos, residentes no estado do Rio Grande do Norte. Destas, 7 (sete) estavam em tratamento, enquanto 3 (três) encontravam-se fora de tratamento há mais de um ano. No que concerne ao procedimento utilizado na etapa do tratamento destinada à prevenção da doença no SNC, foram incluídas crianças submetidas tanto a tratamento quimioterápico isolado, como à radioterapia associada à quimioterapia. Inicialmente foi realizada entrevista individual com os respectivos familiares e/ou responsáveis, na qual os examinadores expuseram os objetivos e procedimentos da pesquisa em questão, e obtiveram a autorização de participação, através de assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Cada criança foi submetida à aplicação individual da Escala Wechsler de Inteligência para Crianças (WISCIII), seguindo-se rigorosamente as instruções apresentadas no Manual do Instrumento. Tais avaliações foram realizadas em uma sala apropriada, nas seguintes instituições de atendimento a estas crianças: Hospital Infantil Varela Santiago, Liga Norte-Riograndense Contra o Câncer, Casa de Apoio à Criança com Câncer Durval Paiva e Grupo de Apoio à Criança com Câncer.

A análise dos dados, considerando-se 90-109 pontos como valor de referência para um desempenho dentro da média esperada, revelou os seguintes resultados: 70% dos sujeitos apresentaram escores de QIT dentro da média (Média= 91,4 pontos, DP=11,4), corroborando com os estudos internacionais de que essa pode não ser uma medida suficientemente sensível aos déficits sutis decorrentes do tratamento da LLA. Em consonância com a literatura, os sujeitos do sexo feminino apresentaram um desempenho inferior aos sujeitos do sexo masculino (30% dos sujeitos), reforçando a idéia que os comprometimentos parecem ser mais visíveis em meninas. No que se refere aos escores obtidos pelos sujeitos no QIV e QIE observa-se em 90% dos sujeitos uma supremacia do desempenho de execução (média de 97,6 pontos, DP=7,76) sobre o desempenho verbal (M= 86,8 pontos, DP=13,78). Os escores obtidos nos Índices Fatoriais indicaram forças e fraquezas mais específicas do funcionamento cognitivo de cada indivíduo: ICV (M=88,8 pontos, DP=13,3), IOP (M=97, DP=9,5) e IVP (M=94,1, DP=13,9), notadamente no IRD - que avalia concentração, processamento seqüencial, memória imediata, resolução de problemas, flexibilidade cognitiva, aspectos necessários a um desempenho acadêmico-social satisfatório - o grupo apresentou o pior desempenho com uma média de 81,9 pontos (DP=13,8).

Os dados fornecidos com o uso da WISC-III estão em consonância com aqueles apresentados pela literatura que destacam a ocorrência de déficits notadamente nos domínios da atenção, memória e funcionamento executivo. Nessa perspectiva, a utilização deste instrumento no presente estudo não teve o objetivo único de encontrar escores de QI de crianças expostas ao tratamento de LLA, mas sim ampliar a compreensão acerca do funcionamento de habilidades cognitivas distintas nestas crianças. A partir desse estudo, foram evidenciados déficits cognitivos que podem estar associados à neurotoxicidade de agentes quimioterápicos e radioterápicos capazes de provocar alterações no neurodesenvolvimento, em especial, no processo de mielinização das estruturas nervosas - envolvida na velocidade de processamento da informação - bem como na estruturação do funcionamento executivo caracterizado por um desenvolvimento mais tardio na maturação cerebral. Estes achados apóiam a crescente discussão de que apesar da acentuada plasticidade do cérebro em desenvolvimento, determinados déficits cognitivos são mais acentuados quando ocorrem lesões em etapas precoces do neurodesenvolvimento, aludindo ao pressuposto de que o desenvolvimento adequado de algumas áreas ou funcionamento estão subjacentes a outras.