62ª Reunião Anual da SBPC
G. Ciências Humanas - 1. Antropologia - 5. Antropologia Urbana
BOLSA FAMÍLIA EM CAMPINAS: PERCEPÇÃO DOS BENEFICIÁRIOS SOBRE PATRIMÔNIO
Kazumi Itoman 1
1. PUC-Campinas
INTRODUÇÃO:
A pesquisa objetivou refletir sobre as concepções de patrimônio familiar e identidade, presentes entre os beneficiários participantes do Programa Bolsa Família (PBF) em Campinas. Nossa reflexão partiu, em grande medida, de trabalhos antropológicos realizados nas últimas décadas em torno da população de baixa renda nas grandes cidades. Tratam-se dos estudos de Teresa Pires do Rio Caldeira (1984), Alba Zaluar (2000), Cynthia Andersen Sarti (2007), entre outros. A maior parte destes estudos antropológicos sobre pobres nas metrópoles brasileiras considera o papel privilegiado da família como núcleo irradiador de concepções de mundo e da própria identidade desses indivíduos. Tais estudos foram realizados, em sua maioria, nos anos 80. Uma das questões da presente pesquisa foi perguntar se atualmente, no final da primeira década do século XXI, a pobreza na periferia das grandes cidades seria vivenciada da mesma maneira. Nesse sentido, um dos objetivos da pesquisa foi refletir, a partir de entrevistas realizadas, se a família continua a ter um papel central no modo de vida da população de baixa renda na periferia de Campinas. Além disso, de que maneira a incorporação dos programas de transferência de renda - em particular o Programa Bolsa Família - teria causado impactos na organização e sociabilidade das famílias. As informações coletadas nessa investigação sugerem que o PBF acaba por reforçar a lógica da rede familiar em sua operacionalidade, entretanto com significativas alterações em sua estrutura. Nossas observações apontam no sentido de que novos arranjos familiares vêm se formando, com uma maior flexibilidade e elasticidade das fronteiras rigidamente demarcadas entre o papel feminino e masculino na família. No decorrer da pesquisa, verificou-se uma mudança no papel da mulher no interior da família, em que esta passou a exercer funções que não são atribuídas tradicionalmente ao seu papel social.
METODOLOGIA:
A pesquisa fundamentou-se em entrevistas, realizadas junto ao responsável pela família perante o programa. Foram realizadas sete entrevistas, entre novembro de 2008 e junho de 2009, na própria casa dos entrevistados, com duração média de 2,5 horas. Além destas, foram feitas nove entrevistas com duração média de 30 minutos, no Centro Público de Apoio ao Trabalhador (CPTA), local administrado pela Secretaria Municipal de Cidadania, Trabalho, Assistência e Inclusão Social (SMCTAIS) da Prefeitura Municipal de Campinas, onde são feitas as inscrições e acompanhamento dos cadastrados no PBF - local popularmente conhecido como "Casa do Bolsa Família". Essas dezesseis entrevistadas foram agregadas a uma base de dados que totalizava cinqüenta entrevistas preliminares, reunindo os contatos dos outros membros do grupo de pesquisa. A idade das entrevistadas (todas mulheres), varia entre 23 (idade das duas mais novas) e 53 anos (idade da mais velha). Todas residem em bairros periféricos na cidade de Campinas, como Jardim Parnaíba, Jardim Campo Belo e Jardim Anchieta. Quanto à estrutura familiar, com exceção de um caso de estrutura monoparental feminina simples (em que a família era constituída pela entrevistada e por seu filho), em todos os outros se tratava de famílias nucleares, compostas por uma mãe/esposa, pai/marido e filho(s), sendo que em um desses casos, tratava-se de uma família nuclear ampliada ou extensa, isto é, incluía também genros e netos. Cabe acrescentar que todas as conversas foram gravadas e posteriormente transcritas, a fim de que pudessem ser devidamente analisadas de acordo com os interesses da pesquisa.
RESULTADOS:
O modelo tradicional de família nuclear continua a ser dominante na concepção de todas as nossas entrevistadas. A despeito disso, diferentes configurações da estrutura familiar - ao menos em relação àquilo que podia ser observado nas últimas décadas - estão se fazendo cada vez mais presentes. No caso da população de baixa renda, tais mudanças podem ser observadas principalmente no que diz respeito à atuação da mulher. Tanto em casos de famílias em que há uma figura masculina cumpridora dos papéis que lhe são moralmente atribuídos; quanto em casos em que essa figura não cumpre com tais papéis, ou mesmo tal figura inexiste de fato (no caso de mães solteiras, viúvas ou divorciadas), nota-se a clara presença do agente feminino na vida social, inclusive baseado no seu próprio papel social de "mulher". Expliquemos melhor como isso foi notado em nossas entrevistas. Em um de nossos relatos notamos como a entrevistada, mesmo reconhecendo o papel atribuído ao homem como "pai" - "ele acha que tem que trabalhar pra todo mundo comer né" - acaba também por identificar seu papel de mulher como mãe que "se ela vê que os filhos tão passando necessidade, ela corre pra todos lado do mundo, bota a boca no mundo..." - e que, portanto, em nome desse mesmo papel, atuaria mais ativamente na sociedade, "botando a boca no mundo". O ponto a ser destacado é que mesmo reproduzindo os papéis sociais a ela atribuídos (como mãe, deve cuidar do bem-estar da família) - e, de fato, em nome desses papéis - a mulher acaba hoje tendo uma atuação em esferas da vida que seriam originalmente (de acordo com esses mesmos critérios) atribuídas aos homens. Mais do que isso, nos parece que o próprio PBF tem importância nesse processo, ao considerarmos o fato deste se caracterizar como um programa de transferência de renda que prioriza a família como um todo, e faz da mulher, enquanto mãe, a mediadora entre o Estado e a instituição familiar (94,1% dos responsáveis perante o programa, em Campinas, são mulheres). Primeiramente, deve-se ressaltar aquilo que já observara Sarti, de que sempre é atribuído um papel fundamental do pai como mediador da família com as demais instituições externas: O homem corporifica a idéia de autoridade, como a mediação da família com o mundo externo. Ele é a autoridade moral, responsável pela respeitabilidade familiar. Sua presença faz da família uma entidade moral positiva, na medida em que ele garante o respeito. Ele, portanto, responde pela família. Cabe a mulher outra importante dimensão da autoridade de manter a unidade do grupo. Ela é quem cuida de todos e zela para que tudo esteja em seu lugar. É a patroa, designação que revela o mesmo padrão de relações hierárquicas na família e no trabalho" (Sarti, 2007:63-4). O homem, nesse sentido ideal, atuaria como o mediador entre a família e a esfera externa ao mundo do lar. Por outro lado, caberia a mulher o cuidado com a esfera doméstica. Entretanto, de acordo com os casos que estamos observando, nota-se uma maior atuação da mulher "botando a boca no mundo", atuando nessa esfera externa ao lar - e isso em nome desse mesmo ideal de atuação da mulher. Para tanto, observa-se aqui certa transformação no lugar ocupado pela mulher na família. Esta passou a exercer muitas vezes funções que não são atribuídas tradicionalmente ao seu papel social, pois ao longo de sua vida familiar ela passa constantemente a exercer as responsabilidades de mãe e pai ao mesmo tempo. Com isso, podemos notar diferentes arranjos familiares, em que as fronteiras fortemente demarcadas e observadas por Sarti há quase duas décadas - entre o papel do homem como pai e mediador do mundo externo e o da mulher como mãe - tornam-se mais porosas, ganhando uma configuração mais elástica. Fundamental nesse processo, a nosso ver, seria o próprio PBF, ao apresentar uma série de condicionalidades (como a freqüência escolar obrigatória de pelo menos 85% do período letivo, para as crianças em idade escolar; a atualização do cartão de vacinação para crianças de 0-6 anos; visitas regulares aos postos de saúde, para exames como o pré-natal e enquanto as mães estiverem amamentando), que acabam imbuindo a mulher - através, justamente, de seu papel de mãe - da supracitada agência perante o Estado e a sociedade, esferas que anteriormente, como observado por Sarti, seriam de domínio masculino. Ao mesmo tempo em que exerce esse papel social, aquele da mulher como mãe é, obviamente, ressaltado. Além disso, pelo contexto em que se dá a atribuição de tais papéis sociais, a identidade da mulher passa a ser ressignificada em certo grau, uma vez que a instituição política prioriza-a no momento de receber o beneficio, contudo responsabilizando-a moralmente perante a sociedade. A implicação disso é a construção de uma certa moralidade quanto ao uso deste dinheiro, que é visto sempre sobre a guarda da mãe, devendo ser aplicado para a manutenção da família em si.
CONCLUSÃO:
Diante do que foi exposto, parece-nos que o PBF, além de ajudar a suprir as necessidades básicas das famílias entrevistadas, pôde contribuir relativamente para reconstruir a hierarquia presente na relação familiar, no que diz respeito às funções do homem como "pai" e à mulher como "mãe" (família nuclear). Mesmo que sua identidade ainda permaneça entrelaçada a uma função moralmente definida pela sociedade, que continua a esperar da mulher, principalmente a marginalizada, que exerça um papel de "boa mãe", notamos uma mudança importante. Pois a partir do momento em que temos a mulher como responsável majoritária da família perante o programa, este a estabelece como mediadora entre a família e o Estado, e o próprio papel social da mulher como 'mãe' é ressignificado, constituindo novos arranjos e propiciando mudanças na realidade feminina. A mulher passou a exercer muitas vezes funções que não são atribuídas tradicionalmente ao seu papel social, exercendo, por exemplo, as responsabilidades de 'mãe' e 'pai' ao mesmo tempo. Assim, notam-se diferentes arranjos familiares, em que as fronteiras rígidas observadas por Sarti há quase duas décadas - entre o papel do homem como 'pai' e 'mediador' do mundo externo e o da mulher como 'mãe' - tornam-se mais porosas, ganhando uma configuração mais elástica e flexível. Assim, o PBF contribui para que as mulheres possam cumprir seu papel socialmente estabelecido (de mãe, administradora da casa) sem depender totalmente dos maridos ou de ter de arrumar emprego fora de casa. Apesar das opiniões variadas e muitas vezes divergentes expressas pelos beneficiários em relação à eficácia do PBF, pode-se notar que este vem causando impactos não apenas na esfera material, mas inclusive moral, das famílias beneficiadas; passando a construir novos significados perante seu patrimônio familiar.
Instituição de Fomento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)
Palavras-chave: Programa Bolsa Família, Identidade, Família.