Em parte significativa da obra de Clarice Lispector há um caráter dialético na relação entre a presença da infância e a formalização estética de sua narrativa, que alcançou as características artísticas inovadoras e específicas de sua representação nos romances, contos, crônicas, e mesmo na literatura infantil. A sua escrita traz a realidade que a envolve para os seus textos, e com um aspecto peculiar, que consiste em distorcer essa "realidade" padronizada. Desse modo a presença da infância em sua obra não é idealizada, e sim de enfrentamento diante da existência, o que explicitamente pode aparecer como temática dos enredos, seja com relação aos primeiros contatos com o mundo de seus personagens crianças, seja nas reminiscências dessa fase em personagens adultos, caso que assume aspecto de uma forma de amparo para suportar a realidade vigente. Por isso, mais implicitamente ainda, no estilo e na totalidade da obra, o espírito da infância possui posição privilegiada no percurso criativo da escritora.

O trabalho visa a presença da infância como forma literária, sublinhando a atenção para a ótica desmistificadora apresentada por concepções modernas como a de Philippe Ariès, cuidando de não naturalizar a infância. A partir daí, procura-se provar que a escritora, mesmo despida de um posicionamento ideológico padronizado, mesmo absenteísta dos enfoques histórico-sociais e políticos explícitos, desmascara o comportamento humano amestrado para a aceitação de normas, porque utiliza uma visão interna dessas condições, de dentro para fora, mantendo vivas as tensões infantis da socialização e questionando, assim, valores pré-estabelecidos.

A escrita de Clarice Lispector mesmo desvinculada de aspectos histórico-sociais explícitos consegue refletir uma dinâmica social muito significativa. Trata-se de uma obra estruturada por movimentos de consciência que, na verdade, não apresentam um afastamento alienante da problemática social. Portanto, o seu intimismo é resistente e desmascarador das atitudes forjadas pela coerção social, à qual aprendemos a nos adaptar desde a infância.

Os textos da escritora indicam uma apreensão sensível e questionadora da realidade, expondo as dificuldades das relações humanas nos mais diversos níveis, problematizando-as através de uma forma literária específica, que se revelou um momento original na história da literatura brasileira.