62ª Reunião Anual da SBPC
G. Ciências Humanas - 7. Educação - 4. Educação Básica
A IMPORTÂNCIA DA MEMÓRIA E DA NARRATIVA NA SUPERAÇÃO DA 'CAPACIDADE PARA NÃO APRENDER'
Ana Archangelo 1
1. Profa. Dra. - Depto. de Psicologia Educacional, Faculdade de Educação - UNICAMP
INTRODUÇÃO:
Bion (1994) afirma que a memória é o armazenamento de objetos que podem ser manipulados como idéias e palavras. Ela exige que o psiquismo seja capaz de transformar os elementos sensoriais e as ansiedades derivadas da experiência com eles em elementos passíveis de serem sonhados, representados em imagens ou pensados. Em casos em que essa transformação não se dá, as experiências habitam a mente do sujeito como 'coisas', as quais não estão disponíveis para associação, separação, reunião, comparação, nem para o desenvolvimento de processos simbólicos. O presente trabalho apresenta resultados de uma investigação realizada com crianças cuja capacidade para não aprender cumpre a difícil tarefa de fazê-las sobreviver à realidade, fragmentando-a e tornando processos necessários à formação da memória e à aprendizagem escolar, praticamente impossíveis. Tal capacidade se sustenta em experiências sociais específicas - nomeadamente, experiências de exclusão social - que se revelam na escola não apenas como ausência de memória, mas também, como ausência de narrativa. O objetivo desse estudo foi investigar em que medida o desenvolvimento da 'memória de si' e da capacidade narrativa poderia inverter o sinal da capacidade acima mencionada.
METODOLOGIA:
O trabalho foi desenvolvido em uma escola pública, situada em área periférica do município de Campinas, com um aluno de 1º ano do Ensino Fundamental, e teve a duração de, aproximadamente, um ano. A criança foi observada em sala de aula e acompanhada individualmente em espaços extra-classe. Foi também utilizado o método de autoscopia, ou seja, o registro, através de videogravações, de uma determinada prática. Originalmente pensada para permitir ao investigador uma análise mais profunda, reflexiva e avaliativa da situação investigada, sem a perda de detalhes do cenário e das atitudes do(s) sujeito(s) pesquisado(s) (Sadalla e Larocca, 2004, p.421), nesse estudo, foi utilizada com o intuito de prover a criança com um material que se constituísse como uma 'memória da experiência vivida' em sala, à qual ela pudesse recorrer para 'revivê-la' e 'elaborá-la' (Freud, 1914). O eixo da investigação foi observar os efeitos, na capacidade para aprender, da situação de se encontrar frente a frente com imagens de sua participação pretérita em atividades de aprendizagem. Nos encontros em que isso ocorreu, a criança esteve acompanhada por um pesquisador e teve à disposição uma caixa de brinquedos, lápis, tinta e papel.
RESULTADOS:
Em todos os encontros, pôde-se notar a oscilação entre certa excitação inicial, decorrente da visão de sua própria imagem e dos colegas, até a presença de angústia, seguida da recusa a assistir ao filme e do pedido para realizar outras atividades (pintura, desenho, jogo). Nos primeiros encontros, a excitação era acompanhada de comentários do tipo 'eu estou bonito'. Com o decorrer do trabalho, as verbalizações passaram a acompanhar as situações de angústia, com comentários do tipo 'eu não gosto de ver isso' ou 'eu não consigo aprender o som das letras'. A criança passou também a narrar algumas situações relacionadas à ausência de familiares em atividades escolares significativas para ela, como festas e apresentações. O nome da pesquisadora, sempre esquecido, passou a ser lembrado e tal lembrança, extremamente valorizada pela criança. No que tange à capacidade para não aprender, pode-se afirmar que a criança passou a esboçar uma curiosidade e um espírito investigativo em relação aos jogos, até então inéditos. Em sala de aula, sua postura apresentou mudança em relação ao comprometimento e ao enfrentamento de dificuldades, usualmente negadas, tornando possível que algumas atividades de alfabetização, antes inacessíveis, passassem a ser realizadas com certo êxito.
CONCLUSÃO:
O uso da autoscopia parece ter sido de fundamental importância para a constituição da 'memória de si e da narrativa'. Mostrou-se eficaz como produção externa de uma narrativa sobre a qual a criança pôde se debruçar, fazendo a transição entre a posição esquizo-paranóide - na qual os elementos da experiência são utilizados para fragmentar e evacuar a dor -, e a posição depressiva - na qual tais elementos podem ser submetidos ao processo onírico, essencial ao desenvolvimento da memória (Bion, 2000). Com o trabalho, a excitação inicial foi cedendo lugar a atitudes mais típicas da posição depressiva, de maior interesse e engajamento com o ambiente. Para concluir, é necessário dizer que: 1. a tolerância à frustração e à dor da própria experiência é imprescindível ao desenvolvimento da memória; 2. a retomada do desenvolvimento da memória e da narrativa é possível na escola; 3. para isso, o 'outro' - a instituição e o professor, particularmente - deve ser capaz de reverie, em outras palavras, ser capaz de operar diretamente, pela criança, parte do processamento das experiências vividas por ela, para que, progressivamente, tal método seja introjetado por ela (Ferro, 2005). Esse outro deve, também, ser capaz de lidar com uma dor profunda que emerge nesse processo.
Instituição de Fomento: Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP
Palavras-chave: Capacidade para não aprender, Autoscopia, Memória e narrativa.