65ª Reunião Anual da SBPC
H. Artes, Letras e Lingüística - 4. Linguística - 5. Teoria e Análise Linguística
"O LIBERTO": CONSTITUIÇÃO E SENTIDOS DE UMA POSSÍVEL FÓRMULA DISCURSIVA
Liliana de Almeida Nascimento Ferraz - Mestranda em Lingüística - Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
João Henrique Silva Pinto - Mestrando em Lingüística - Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
Jorge Viana Santos - Profº Dr./Orientador – Dpto. De Estudos Lingüísticos e Literários - UESB
INTRODUÇÃO:
Ao analisarmos alguns documentos históricos do Brasil escravocrata do século XIX da região de Vitória da Conquista – Bahia, como cartas de liberdade, escrituras de compra e venda, textos legais do império, observamos a circulação da forma cristalizada "o liberto", que materializa, conforme Santos (2008), um conceito específico de liberdade que não se aplica ao senhor de escravos. Segundo Krieg-Planque (2009, p. 13) uma fórmula discursiva "se refere a um conjunto de formulações que, pelo fato de serem empregadas em um momento e em um espaço público dado, cristalizam questões políticas e sociais que essas expressões contribuem, ao mesmo tempo, para construir". Segundo a autora (2010, p. 61), há quatro propriedades que descrevem uma fórmula discursiva, a saber: tem um caráter cristalizado; se inscreve numa dimensão discursiva; funciona como um referente social; e comporta um aspecto polêmico. Fundamentando-se nessas propriedades descritas na obra "A noção de fórmula em Análise de Discurso" de Alice Krieg-Planque (2010), este trabalho analisa a expressão "o liberto" recorrente nos documentos históricos da escravidão, procurando esboçar uma possível resposta para a pergunta: seria a seqüência "o liberto" uma fórmula discursiva?
OBJETIVO DO TRABALHO:
Baseando-se no conceito de fórmula discursiva de Krieg-Planque (2010), procuramos analisar a forma cristalizada "o liberto" presente em documentos históricos da escravidão com o objetivo de verificar se esta expressão se constitui como uma fórmula discursiva e, nesse caso, quais sentidos estão a ela vinculados.
MÉTODOS:
Para o desenvolvimento deste trabalho, delimitamos, por questões metodológicas, a análise do aparecimento dessa seqüência em cartas de alforria registradas em Livros de Notas constantes no Tabelionato de Ofícios da 1ª. Vara Cível do Fórum João Mangabeira de Vitória da Conquista-Bahia. Estas cartas foram extraídas do corpus Dovic (Documentos Históricos de Vitória da conquista – Ba e Região Sudoeste da Bahia) coordenado por Santos e Namiuti (2009), no qual encontramos os textos, originalmente manuscritos, já transcritos e com diferentes processos de edição. Além das cartas, recorremos também a algumas leis do império citadas em Santos (2008). Após a identificação e levantamento das ocorrências, partimos para a análise dos dados, na qual aplicamos a proposta teórico-metodológica de Krieg-Planque (2009), a fim de verificar se a forma cristalizada "o liberto" apresenta as propriedades de uma fórmula discursiva tal qual descrita pela autora, a saber: caráter cristalizado, dimensão discursiva, referente social e aspecto polêmico. Além disso, utilizamos também os conceitos de liberdade propostos em Santos (2008).
RESULTADOS E DISCUSSÃO:
Nas cartas de liberdade e leis do império analisadas, encontramos a ocorrência da seqüência "o liberto", conforme vemos em "(...) aos onze dias do mez de Novembro do dito anno, nesta Imperial Villa da Victoria em meu cartorio, compareceu o liberto Ursino, e me aprezentou uma Carta de liberdade (...)". Neste texto, "o liberto" funciona como uma unidade lexical simples, cristalizada durante o regime escravocrata no Brasil, e que era utilizada para nomear o escravo que havia obtido a liberdade. A sequência insere-se dessa maneira, na propriedade de cristalização da fórmula discursiva apontada por Krieg-Planque (2009). Quanto à dimensão discursiva, observamos que, conforme Santos (2008, p. 24) o termo liberto passou a circular, no regime escravocrata, na tensão entre dois tipos de liberdade: a do escravo (transitiva) e a do senhor (intransitiva), destacando o caráter conflituoso da fórmula, que se constituiu, colocando em discurso a diferença entre a liberdade do senhor e a liberdade do escravo. "O liberto" funciona também enquanto referente social, já que o liberto era referido nos documentos como um homem legalmente livre, entretanto era visto por toda a sociedade ainda como escravo, já que a "escravidão" estava na cor, na raça, na condição econômica (SANTOS, 2008, p.51).
CONCLUSÕES:
Considerando o exposto, podemos dizer que a proposta teórica de Krieg-Planque (2010) sobre o conceito "fórmula discursiva", pode ser utilizada também para a análise de corpus proveniente de documentos antigos como cartas de liberdade e leis do império. Através das análises feitas, podemos apontar o funcionamento da seqüência "o liberto" como possível fórmula discursiva, já que atende, mesmo que parcialmente, os critérios estabelecidos por Krieg-Planque (2010): tem um caráter cristalizado, se inscreve numa dimensão discursiva, funciona como um referente social e comporta um aspecto polêmico. Além disso, o percurso desenvolvido na análise dos dados, evidenciou que a fórmula discursiva "o liberto" está apoiada em pré-construídos e sentidos de liberdade opostos.
Palavras-chave: Sentido, Liberdade, Escravidão.