65ª Reunião Anual da SBPC
F. Ciências Sociais Aplicadas - 5. Direito - 13. Direito
MEMÓRIA, LEITURA E INTERPRETAÇÃO DA LEI DA “FICHA LIMPA” SEGUNDO A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Luis Cláudio Aguiar Gonçalves - Depto. de Ciências Sociais Aplicadas – LAPADis/UESB
Maria da Conceição Fonseca-Silva - Profa. Dra./Orientadora–Depto. de Estudos Linguísticos e Literários–LAPADis/UESB
Leandro Chagas Barbosa - Depto. de Estudos Linguísticos e Literários – LAPADis/UESB
Vinícius Fonseca-Nunes - Depto. de Ciências Sociais Aplicadas – LAPADis/UESB
Guilherme Barbosa Nunes - Depto. de Filosofia e Ciências Humanas - LAPADis/UESB
Mayara Archieris Amorim - Depto. de Estudos Linguísticos e Literários – LAPADis/UESB
INTRODUÇÃO:
A LC 135/2010 (Lei da “Ficha Limpa”) é uma lei de iniciativa popular que, inserida no movimento de moralização da administração pública, introduziu na LC 64/1990, novas causas de inelegibilidade, que consideram a vida pregressa do candidato. Após sua publicação, passou-se a se discutir se a novel lei teria eficácia imediata, tendo em vista o que diz o art. 16, da CF/88: “a lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”. Julgando o RE 633.703, o STF decidiu que a LC 135/2010, ao modificar as condições de elegibilidade, interferiu no processo eleitoral e que, por isso, não seria aplicada às Eleições 2010. Neste trabalho, apresentamos resultados da pesquisa na interface “direito e interpretação”, dando à hermenêutica jurídica um enfoque inédito e buscando compreender o papel da memória e da equivocidade da língua nos gestos de leitura/interpretação de textos jurisprudenciais citados. Trazemos, ainda, os métodos hermenêuticos para o interior da Análise de Discurso, tomando os momentos interpretativos do campo jurídico “enquanto atos que surgem como tomadas de posição, reconhecidas como tais, isto é, como efeitos de identificação assumidos e não negados” (PÊCHEUX, 1983, p.57).
OBJETIVO DO TRABALHO:
a) Analisar gestos interpretativos dos hermeneutas do STF, ligados ao controle da constitucionalidade da Lei da “Ficha Limpa” e ao exame de sua eficácia para as Eleições 2010; b) discutir o papel que a memória e a língua exercem nos processos de cognição de normas e teses jurídicas, partindo da hipótese de que os precedentes jurisprudenciais funcionam como lugares de memória discursiva.
MÉTODOS:
O corpus da pesquisa foi constituído de arquivos de áudio que veiculam as sessões plenárias de julgamento, coletados no sítio da Rádio Justiça, e de excertos retirados dos autos de três recursos extraordinários apreciados pelo STF. Para a análise das materialidades selecionadas, adotamos como metodologia o paradigma indiciário, modelo epistemológico surgido no final do século XIX, no âmbito das ciências humanas, e que foi explicitado por Ginzburg ([1986] 1991). Já para a compreensão do objeto, mobilizamos pressupostos teóricos da Análise de Discurso, notadamente as noções de “posição-sujeito” e “memória discursiva”, trabalhadas por Pêcheux ([1975] 2009, [1983a] 1999), respectivamente, em Semântica e Discurso: Uma Crítica à Afirmação do Óbvio e em O Papel da Memória, e as discussões que o referido autor realiza em torno da opacidade da língua e da equivocidade dos enunciados, em Discurso: Estrutura ou Acontecimento (PÊCHEUX, [1983b] 1997). Do mesmo modo, adotamos a noção de “lugar de memória discursiva”, cunhada por Fonseca-Silva (2007), em Mídia e Lugares de Memória Discursiva, a partir de deslocamentos dos conceitos de “lugar de memória” (HALBWACHS,1950; NORA, 1984), “domínios de memória” (FOUCAULT, [1969] 1997) e “memória discursiva” (COURTINE, 1981).
RESULTADOS E DISCUSSÃO:
Foram analisados excertos retirados de votos de ministros, de sustentações orais de advogados e de pareceres do Procurador-Geral da República. O que se verificou foi que, circulando pelas construções interpretativas propostas pelas exegetas do STF, o precedente jurisprudencial consubstanciado no RE 129.392, sendo interpretado a partir diferentes posições-sujeito, assumiu sentidos que ora se conformavam com o que defendiam os recorrentes, ora com as teses alegadas pelos recorridos. Esse gesto de interpretação, por meio do qual foram produzidos efeitos/deslizamentos de sentido, foi possível graças ao fato de que os julgados, ao se tornarem precedentes, constituem-se como lugares de memória discursiva. A análise indica, ainda, que, associada à disputa teórico-conceitual ocorrida entre os defensores da imediata aplicação da Lei da “Ficha Limpa” às Eleições 2010, apontada como instrumento moralizador da política, e entre aqueles que postularam em favor do Princípio da Anualidade Eleitoral (art. 16, da CF/88), como corolário da “segurança jurídica”, teve lugar um jogo de (re)construção de espaços de memória discursiva, em que se inserem posições-sujeito que retomam como objeto de discurso a definição do Estado Democrático de Direito e os axiomas que o fundamentariam.
CONCLUSÕES:
As análises indicaram que os precedentes, enquanto lugares de memória discursiva, funcionam como espaços de interpretação, isto é, como espaços para manutenção, circulação e deslize de sentidos, de onde os enunciados dos intérpretes da Corte retomaram certas questões político-jurídicas, concernentes, por exemplo, à função do STF no combate à corrupção política e aos princípios norteadores do Estado Democrático de Direito: moralidade administrativa e segurança jurídica. Indicaram, ainda, que a opacidade da língua e a memória exercem papel preponderante nos gestos de leitura, interpretação e ressignificação dos precedentes jurisprudenciais e das exegeses normativas, pois a memória é, no sentido de Pêcheux, é a condição do legível em relação ao próprio legível e abordar o real da língua significa analisar o “papel do equívoco, da elipse, da falta”, na produção/circulação de sentidos.
Palavras-chave: Eleições 2010, Corrupção Política, Moralização da Administração Pública.